Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Monday, December 08, 2008

Maio de 1968: da necessidade ao desejo.

I. Introdução: opiniões ou problemáticas?

Por que se fala atualmente tanto sobre o ano de 1968 e, mais especificamente, do Maio francês? Essa escrita tem como objetivo responder essa pergunta, como objetivo geral. Mais especificamente: o que o Maio tem para nos oferecer? Quais suas novidades? Qual sua relevância política atual? Em quê 1968 nos permite entender a conjuntura política atual?

O tema é – pode-se chamar a isso de paradoxo – tortuoso. Uma boa imagem para se entender, num primeiro significado, o que é o Maio de 1968 é o de um palco onde vários protagonistas querem fazer valer a sua presença. Em certa medida, a história do Maio é a história dos pretendentes. Em uma palavra, é a história de uma pretensão. Há uma descontinuidade entre as duas frases. Na primeira quero salientar o entrismo das organizações partidárias nas movimentações práticas do Maio de 1968; na segunda quero manifestar uma tendência geral pós-1968.

Por uma questão de método que analisarei no tópico seguinte meu terreno é o segundo: que tipo de pretensão tinha o Maio de 1968? Não se pretende, não obstante, fazer do Maio um sujeito surgido a partir do nada ou dos escombros da política equivocada dos Partidos Comunistas da época. Outra linha: o Maio de 1968 representa o marco[1] de uma tendência que atualmente não pode ser ignorada por uma prática política emancipatória e radical. Será essa a hipótese dessa escrita? Talvez. Embora eu aposte numa leitura acerca do Maio de 1968, não estou preocupado em lhe dar um estatuto de verdade. Ou seja, minha preocupação aqui não é dizer que essa leitura é mais ou menos verdadeira do que qualquer outra, embora admita que algumas leituras são fenomenais[2]. É neste sentido que posso dizer que eu não trago uma opinião para ser debatida sobre o Maio de 1968, mas sim problemáticas para serem pensadas. Ouso propor, portanto, em vez de uma leitura ousada e inovadora, um conjunto de problemáticas que forcem o pensamento a pensar a atualidade. Se eu falei antes de um objetivo de escrita, apresentei com essa última frase meu objetivo político ao escrever essas palavras.

Há duas direções aqui: primeira a de problematizar o Maio de 1968, segundo a de entender o que o Maio de 1968 problematizou. Escolho pela última. Saio, portanto, do campo das opiniões e das contradições (defender se o Maio foi isso ou aquilo, representou isso ou aquilo etc.) para o campo das problematizações. Esse direcionamento ficará claro no tópico posterior. Ainda resta, nesta introdução, expor a ossatura do texto.

Após a introdução, o primeiro tópico é sobre uma questão de método que tem como objetivo mostrar de que lugar eu falo e com que objetivo. Para tanto, coloco a intenção de não chegar até o Maio de 1968, explicar seus motivos, mas partir dele, ou seja, expor suas problemáticas; o segundo ponto é conceituar o que é necessidade e o que é desejo para deixar claro a mudança efetuada no plano da política pós-1968; os dois pontos subseqüentes (a ordem necessária e desejante) visam consolidar que antes do Maio de 1968 se tinha uma ordem única de movimentação política e que o Maio vem trazer, senão uma duplicidade, uma multiplicidade na ação emancipatória; por fim uma introdução que visa raspar do solo do debate aquilo que constitui uma série de obstáculos.

Começo, a partir de agora, a explanação propriamente dita sobre o Maio de 1968.

II. Questão de método: não chegar até o Maio, mas partir dele.

Certa feita, depois de assistir a duas palestras de dois professores renomadíssimos, pelo menos dentro do ambiente da UFS (Universidade Federal de Sergipe), tive uma súbita sensação de desconforto. Pareceu-me que ambos os professores estavam engajados em uma tarefa unívoca: mostrar que o marxismo é ainda uma leitura possível. Evidentemente que esse objetivo hoje cumpre um papel necessário na conjuntura de apatia política dos estudantes. Uma das palestras era exclusivamente sobre o Maio, a outra era sobre cultura. Isso pouco importa, aqui.

Se o marxismo é ainda possível me parece uma problemática lançada pelo próprio ano 1968. É como se alguém que se lança nessa tarefa de defesa marxista estivesse num período pré-seiscentista. Uma vez que a década de 60 definitivamente abalou para sempre o edifício até então duro e coeso marxista. A meu ver, não é só preciso afirmar esse abalo como entender onde é que o marxismo foi abalado. Isso significa abrir mão das explicações econômicas que possibilitaram o aparecimento do Maio. Mais amplamente, significa abrir mão de se chegar até o Maio de 1968 e se lançar na tarefa de partir do Maio de 1968. O que significa partir dele?

Significa entender quais elementos passaram a fazer parte da movimentação política depois do Maio. A questão não é por que foram introduzidas novas problemáticas no seio da política? Parte-se de outra ordem. O fato é que foram introduzidas outras problemáticas. Quais são elas? Em que elas consistem? Que peso tem na contemporaneidade? É por isso que me parece muito mais frutífero não o que tornou o Maio possível, mas o que o Maio possibilitou surgir. Não quem fez o Maio ou de onde ele veio, mas para onde passamos a ir pós-1968, politicamente falando. Para me fazer entender melhor, usarei uma imagem: se a política pode ser entendida como um tabuleiro cujos adversários são a revolução e a ordem, cada qual com suas peças e suas jogadas, o que ocorreu em 1968 foi a introdução de novos movimentos para que se vença esse jogo.

Em suma, a questão aqui é partir das novas problemáticas lançadas pelo Maio. Antes disso, vamos entender como elas puderam ser lançadas. A partir de uma análise sobre duas figuras que vou usar como forma de elucidar o que estou tentando dizer: a necessidade e o desejo.

III. Necessidade e Desejo

O que se quer ao dizer que algo é necessário? Comumente se responde que o necessário é aquilo que denota carência. Por exemplo, o alimento é necessário porque sem ele o homem perece e deixa de viver. É uma resposta boa, mas insuficiente para o que estou tentando colocar em questão. A partir daqui vamos entender por necessidade aquilo que designa um movimento que não pode ser de outra forma. Então, em vez do alimento, o necessário passa a ser a fome. Sem a fome não há vida. A fome é uma necessidade vital. Há fome porque há vida. A fome é necessária à vida. É uma condição sem a qual a vida não existe. Outro exemplo: a morte é necessária à vida. Há vida porque há morte, e vice-versa. A necessidade tem uma relação intrínseca com a existência, o que ela quer mostrar são condições que tornam possível algo acontecer. A necessidade é muito mais uma dinâmica do que uma presença estática. A necessidade é sempre a dinâmica interna de algo. A necessidade sempre quer remeter a um movimento sem a qual não há o que está em questão. Por exemplo, a fome é um elemento dinâmico da vida, e vice-versa. Posso dar outros exemplos: a interação social é outra necessidade vital ou a sensação de segurança. Dando um passo adiante, necessidade não é uma carência, é uma inevitabilidade. Tudo aquilo que é inevitável, é-o porque é necessário. Pois se não for, não existe, não perdura, não vive.

O que se opõe à necessidade? Se ainda se estiver fincado no conceito de necessidade como carência, entender-se-á seu antípoda como o supérfluo. Já deixamos longe de nosso escopo esse tipo de argumentação. Coloquei, portanto, a necessidade no solo daquilo que é inevitável. Continuando, o que se opõe a inevitabilidade? A resposta é clara: a evitabilidade, aquilo que torna o inevitável evitável. Chamo isso de desejo, a saber, aquilo que faz com que a necessidade não seja necessária, aquilo que substitui a dinâmica necessária a uma dinâmica desejante. O desejo é aquilo que se cola na necessidade e muitas vezes se confunde com ela, embora sempre vá muito mais longe que ela. Enquanto a necessidade é estática (sem movimento) e teleológica (com um fim determinado), o desejo é plástico. Exemplificando: a fome é necessária, mas o desejo pode levar um corpo a realizar greve de fome até morrer. O desejo não faz somente o alimento ser desnecessário, mas como a própria fome, dinâmica constituinte do corpo vivo, sê-la igualmente. Desejo e necessidade estão situados em solos distintos. Usando um exemplo já dado: o desejo de comer é uma coisa, a necessidade de estar biologicamente vivo é outra. O desejo problematiza a necessidade: avança ou obstaculiza-a. O desejo pode desviar. Reproduzir a espécie faz parte da necessidade, o ato sexual é desejo. Não é uma questão de forma e conteúdo, mas uma problemática de campos de ação distintos.

Ora, mas o que tem a ver desejo e necessidade com o Maio de 1968? Entendo que ele foi o marco que tirou a atividade política do solo do necessário para o solo do desejo. Se a transformação radical da sociedade capitalista era uma necessidade passou a ser uma questão de desejo. Ele é a grande problemática inserida no corpus político. Vamos entender como isso se deu.

IV. A ordem necessária: miséria, revolução e mais-valia

Lênin considerava o imperialismo como a última fase do capitalismo, “fase superior”, segundo suas palavras. Em seu livro destinado a esse assunto ele demonstra várias vezes que a revolução proletária internacional estava batendo à porta da Europa, o cadáver do capitalismo já estava em putrefação, deixando o mau-cheiro aos narizes aguçados dos revolucionários. Poderíamos dizer, sem medo de errar, que não só para Lênin mas como para todo o marxismo da época a revolução era necessária, ou seja, inevitável. A revolução aconteceria de qualquer forma, a questão era preparar-se para tal. O debate da época na Alemanha, por exemplo, entre Rosa Luxemburgo e Bernstein era muito mais sobre o como da revolução, se por reforma ou não. A revolução era algo que estava na ordem do dia.

Na Rússia czarista, para usar um exemplo forte, reinava uma miséria monstruosa. O lema bolchevique “pão, paz e terra” denota muito bem qual era a ordem presente na Rússia: a ordem da necessidade. A revolução era algo que tinha de ser realizado. A revolução era, antes de tudo, uma reconfiguração radical da sociedade russa. Uma sociedade que não podia continuar funcionando como funcionava. A crítica central dos bolcheviques estava centrada numa questão fundamental: a mais-valia. A apropriação do sobre-trabalho por parte da ordem capitalista.

Isso tem uma série de conseqüências. É própria do marxismo soviético a idéia de que o homem é ontologicamente um ser de trabalho. O trabalho é a condição de sociabilidade, ele é o elemento fundante da sociedade. Entenda-se: o trabalho não vem antes da sociedade e nem depois, é ele que torna possível a existência em sociedade. A partir do momento em que há trabalho pode-se dizer que há sociedade ou mesmo que há humano. A problemática central de uma sociedade emancipada é a questão da libertação do trabalho. No tabuleiro marxista soviético, os adversários são o capital x trabalho. Através de uma tomada do poder pela classe revolucionária, os trabalhadores, acreditava-se realizar um passo fundamental na transformação social.

Três elementos centrais estão em jogo na problemática da ordem necessária: a miséria (a condição humana que não pode continuar sendo a mesma), a revolução (forma de movimentação social-coletiva que tem como característica histórica retirar os homens dessa condição paupérrima e levá-los a um além-histórico, cujo sujeito seria os trabalhadores – num país de maioria camponesa) e mais-valia (apropriação do trabalho excedente por uma classe parasitária no quadro socioeconômico. No quesito movimentação política, essa ordem trata a ação revolucionária em termos de tática e estratégia. Se a ordem necessária reflete uma condição de miserabilidade social que não pode continuar a mesma, é lógico que a política é vista como uma guerra continuada por outros meios. Sendo assim, táticas de guerra como um partido clandestino e militarizado são peças essenciais para fazer funcionar outra engrenagem.

A revolução seria como uma peste que se alastraria por toda a Europa, inclusive detidamente sobre a Alemanha. A revolução se daria por um paradigma preciso: a conquista do poder estatal como epicentro da mudança radical[3]. O capitalismo é marcado como um sistema que produz miséria e opressão. Eis as duas palavras-chave da emancipação: se conseguirmos acabar com a miséria e com a opressão estaremos caminhando a passos largos rumo a uma sociedade livre. Num mundo necessário essa formulação prática-revolucionária estava como um peixe n’água. De 1905 a 1919, a idéia de uma revolução pelo poder estava bastante em voga. No entanto, há um movimento que começa no esmagamento do grupo spartakista[4] na Alemanha que o Maio de 1968 fará questão de pontuar: a passada da necessidade da revolução ao desejo da ordem estabelecida.

V. A ordem desejante: poder, corpo e subjetividade

O que parecia realizável em 1917 – a revolução estrutural de uma sociedade miserável – em 1933 era um doce sonho e em 1940 um pesadelo distante. Os campos de concentração nazistas e os gulags stalinistas cumpriam uma mesma função: modernização retardatária[5], trabalho forçado em prol do crescimento/progresso nacional. Do lado do stalinismo, a materialização de um socialismo, sua realidade histórica presente no maior país do mundo, fazia com que o pensamento revolucionário tirasse um elemento da reflexão: a opressão. Passou-se a entendê-la não como uma característica essencial do capitalismo. A opressão era um fenômeno de superfície de pontos mais estruturais do sistema capitalista. Pontos que perdurariam solidamente após a derrocada do capitalismo. Ou seja, derrubar o capitalismo não era entendido como uma tomada de poder nem como a execução de uma revolução tal qual em 1917.

Há uma mudança sutil e significativa aqui. A questão não é dizer que movimentos revolucionários de massa são descartáveis num processo revolucionário, mas questionar a própria revolução em seu ato revolucionário. É preciso afirmar que não se tinha, à época, a clareza que temos hoje da degeneração stalinista. A questão era: por que a revolução não aconteceu? Quais elementos obstaculizaram a atividade revolucionária? Quais os mecanismos que realizaram essa tarefa inédita?

Por sua herança hegeliana, o marxismo sempre apostou na razão e na consciência. Ou seja, a conscientização como peça fundamental de uma revolta. Ou mesmo a racionalização da produção como elemento revolucionário para uma nova ordem. Até 1933, a crença na razão não havia jamais sido abalada. Muito pelo contrário, o debate se dava em como produzir consciência de classe[6]: se através de um partido que a traria de fora, a matriz leninista, ou através de movimentações prático-cotidianas, a matriz luxemburguista. O problema colocado é que duas ordens totalitárias acabavam de subjugar definitivamente as forças da revolução. Há pelo menos três tendências que passam a pensar o não da revolução.

Em primeiro lugar, o freudo-marxismo[7]. A junção entre Freud e Marx é, grosso modo, a união entre libertação individual e coletiva. O quadro conceitual de Freud permite pensar uma ordem libidinal desejante que subjuga o corpo a certa situação. Freud realiza uma constituição psíquica-antropológica do homem. Em outras palavras, Freud tenta mostrar a ossatura e a arquitetura do homem, como ele funciona individualmente. Através de Freud, os marxistas puderam entender que a dominação se dava também no solo psíquico-individual. Além do trabalho e da opressão, da miséria e da exploração, havia a libido.

Em segundo lugar, o marxismo-ocidental[8]. Esse marxismo peculiar se esforçou para pensar as relações fetichistas do capitalismo. Colocando o valor no centro do debate, em vez da mais-valia, esse marxismo entendia que o capitalismo deve ser condenado não apenas pela miséria mas principalmente pela inversão entre coisas e pessoas, pela fetichização das relações sociais.

Em terceiro lugar, o nietzscheo-marxismo ou marxismo-nietzschiano[9]. Aqui a questão passa a ser um diálogo entre Nietzsche e Marx, que só viria a ocorrer na década de 60. Antes disso, Nietzsche foi rechaçado. Apenas marginalmente, aqui e ali, ousavam arrancar Nietzsche do túmulo proto-fascista cujas correntes marxistas ortodoxas tinham-no enfiado a sete palmos do chão. A questão aqui passava a ser o poder. Como se pensa o poder? Qual sua amplitude? Como ele funciona?

O resumo é demais, pede uma explanação mais detalhada. E se falar em “fetichização” é já parecer demasiado complicado, parece-me um retrato fiel de como a movimentação revolucionária ainda está no paradigma do Estado e vê as mudanças de forma simples. Para não me reter a explicar essas três tendências isoladamente, digo então que elas levantaram três problemáticas novas: o corpo, o poder e a subjetividade. Em 1968, essas problemáticas explodiram e ganharam o terreno político de ação.

Da parte do corpo, passou-se a entendê-lo não como uma propriedade, onde uns têm e outros não. O poder, então, é algo mais que funciona. Não se pode dizer que o poder, ao trocar de mãos, desaparecerá. Ele mudará de configuração. É por isso que o poder não está num lugar específico, no Estado. Tomar o poder através do Estado é começar pelo fim. Há redes para além do Estado que mantém a dominação capitalista. É assim que o poder sai de uma questão de tática e estratégia e entra numa questão de subjetividade. Quando Guy Debord fala de espetáculo, podemos entender como uma luta subjetiva que dominação.

O nazifascismo e o stalinismo colocaram para o pensamento de esquerda a constatação de que a revolução não é necessária, ela é desejante. Há mecanismos de poder que podem fazer rodar para trás a História. Na década de 60 em diante, a nossa sociedade recebeu vários nomes: sociedade do espetáculo (Debord), sociedade de consumo (Baudrillard), sociedade do trabalho (Gorz), sociedade da opulência (Marcuse), sociedade totalmente administrada (Adorno) etc. Todas essas sociedades tinham como objetivo manter uma dominação capitalista não mais através da exploração ou da miséria, mas através de uma produção de subjetividade passiva.

Em vez de miséria, revolução e mais-valia, o Maio de 1968 colocou em questão o corpo, o poder e a subjetividade. Se no período dos totalitarismos a pergunta ainda era por que a revolução não havia ocorrido, em 1968 se propôs entender esses mecanismos e tentar quebrá-los. Em 1968 há uma crítica radical do sistema capitalista. Radical porque vai até a raiz do sistema: o fetichismo da mercadoria. A separação do fazer. O fetichismo da mercadoria reflete um processo social onde os homens são submetidos a sua própria atividade, o trabalho. É por isso que para a crítica radical a ontologia do trabalho é fruto da fetichização. O trabalho não é condição ontológica do homem, mas condição histórica.

Tentando ser mais claro, o fetichismo da mercadoria provoca uma objetificação do sujeito e uma subjetivização do objeto. Ou há uma personificação das coisas e uma coisificação das pessoas. Dando um exemplo prático: as coisas (dinheiro e capital) são convertidas em sujeitos da sociedade e as pessoas (trabalhadores) são convertidos em objetos. Em vez de o trabalho servir ao homem, é o homem que serve ao trabalho. É esse movimento fetichista que é posto em questão em 1968. Depois dele, o fetichismo passa a ser um dos problemas centrais que enfrenta qualquer revolução, pois pensar e fazer revolução é necessariamente um ato antifetichista.

Dando um passo atrás, a subjetividade entra no campo de combate político desde quando Adorno e Horkheimer falam em indústria cultural, em mistificação das massas. Pode-se dizer que, a partir deles, começa uma reflexão política que não dá mais o estatuto de necessidade ao objetivo. Ou seja, nem sempre uma condição objetiva de miséria e pobreza leva à revolução. Essa objetividade pode ser subjetivamente controlada, através do controle do desejo. Em um regime totalitário há além das mortes e das torturas uma construção subjetiva de controle político da mente.

VI. Conclusão: empecilhos, rótulos, lutas, trincheiras... do que é reativo e do que é ativo.

Retomando tudo o que eu disse. Minha tese é a de que o Maio de 1968 representa o marco numa reflexão e ação política emancipatória. Com isso, quis dizer que o Maio de 1968 sai do plano das necessidades e das inevitabilidades e entra no solo do desejo, ou seja, mecanismos de poder que obstaculizam a transformação da sociedade. Essa abertura provocada pelo Maio é rica demais. Poderíamos enveredar pelo problema do gênero, do prazer. Podemos entra nas salas gigantes da mídia ou nos labirintos da crítica da própria crítica da sociedade. Colocando o desejo, em vez da necessidade, em primeiro lugar, o Maio de 1968 nos deixa uma grande questão: que tipo de organização é capaz de quebrar a alienação moderna? O Maio de 1968 é uma fenda aberta para sempre na História e uma ferida que jamais cicatrizará na ortodoxia marxista.

Talvez tenha sido Che Guevara que tenha dito que ninguém precisava se dizer marxista, na década de 1960, uma vez que as problemáticas do mundo daquela época eram as problemáticas capitalistas. Sendo ousado, direi que hoje ninguém mais precisa se intitular pós-moderno, porque as problemáticas atuais são as problemáticas pós-modernas, isto é, do poder, do corpo e da subjetividade. Noves fora o fato de haver vários tipos de “pós-modernidade”, com essa frase quero sair de um terreno que julgo ser reativo. Por isso que em nenhum momento me coloquei a questão de se o Maio de 1968 foi uma revolta ou revolução, se ele conseguiu edificar algo, quais são suas perdas e ganhos. Minha preocupação é colocar o que o Maio de 1968 abriu como campo de combate político. Atualmente, é preciso entender essa abertura para qualquer atividade que se diga revolucionária.

Rótulos como o de “pós-moderno” apenas freiam o debate. É extremamente reativo buscar alguma verdade por trás do Maio de 1968. A meu ver, constitui-se como atividade afirmar o devir-1968, a saber, “não trabalhe jamais!”, “seja realista, exija o impossível!”, “a política está nas ruas!”, “as estruturas não andam aqui!” etc.

VII. Bibliografia recomendada

Há uma série de livros importantes para se compreender o maio de 1968 e a fenda por ele aberta. Cito os que considero mais importantes, embora no texto tenha citado além desses e usado também outros para a escrita:

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. 2. reim. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda, 1997
Loureiro, Isabel Maria. Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária. São Paulo: UNESP, 2004.
LUKÁCS, Georg. . História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2003.
MARX, Karl, 1818 - 1883. O capital: crítica da economia política. 3 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. 4 v. (Os economistas)
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de o capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.
RUBIN, Isaak Illich. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980.


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[1] Marco. Não nascimento. Não coroamento. Isto é, o Maio de 1968 não é nem o nascimento de uma política surgida a partir do nada, não é o início de um ciclo. Tampouco é o fechamento consolidativo de uma política contra-hegemônica que encontraria a partir da data uma inserção maior. Um marco é aquilo que assinala os limites de um território. O Maio de 1968 é um marco porque inseriu nos limites do território político novas problemáticas que serão posteriormente analisadas.
[2] Conferir os autores Robert Kurz e o Anselm Jappe.
[3] John Holloway, em seu Mudar o mundo sem tomar o poder, realiza uma excelente análise do paradigma do Estado.
[4] A Liga Spartakus era um grupo que tinha como membro a militante Rosa Luxemburgo e mais outros nomes fenomenais embora não tanto conhecidos quanto ela. Esse grupo defendia a tese de que a guerra mundial colocava a humanidade na seguinte alternativa: ou manutenção do capitalismo, novas guerras e rápida queda no caos, ou abolição da exploração capitalista. Ou seja, ou revolução ou barbárie. Melhor dizendo: socialismo ou barbárie. Rosa Luxemburgo representa um ponto de junção entre a necessidade e o desejo, ela tanto entende o colapso do sistema capitalista como a necessidade de uma movimentação prático-revolucionária. É como se Rosa Luxemburgo estivesse entre o determinismo e o voluntarismo. Os dilemas da ação revolucionária, em Rosa, são os dilemas da necessidade e do desejo. Daí porque ela ocupa, em minha reflexão, um lugar ímpar. A Liga foi o marco de uma movimentação abafada por uma ordem que viria a se consolidar em 1933 na Alemanha, a saber, o nazismo.
[5] Robert Kurz, no Colapso da Modernização, detidamente neste ponto mostra como o movimento proletário serviu intrinsecamente à aceleração capitalista nos países periféricos.
[6] Em 1923 aparece o primeiro grande livro a problematizar a relação entre revolução e consciência de uma forma inédita. George Lukács, com o seu História e Consciência de Classe, sai do terreno da necessidade revolucionária e parte para o desejo, segundo ele o problema central é o fetichismo da mercadoria e não a opressão/miséria provocada pelo capital.
[7] Entram, aqui, nomes como Reich, Marcuse, Adorno, Horkheimer etc.
[8] Entram, aqui, três nomes fundamentais: Lukács, Rosdoslky e Rubin.
[9] Entram, aqui, nomes como Michel Foucault,Gilles Deleuze e Félix Guattari.

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