Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Monday, June 02, 2008

L’ADVERSAIRE OU O DESAFIO DA VERDADE.

Em 1993, Jean-Claude Romand, pseudo-médico francês, assassinou seus pais, seus filhos e sua mulher. Na tentativa de suicídio fracassou e até hoje cumpre pena. L’adversaire (2002) um pouco de sua vida. Da diretora argelina Nicole Garcia [1946- ], o filme provoca um questionamento interessantíssimo. Eu diria, para ser mais claro, uma afetação estranha, uma descentração ímpar.

Jean-Marc Faure construiu ao longo de 20 anos a história de uma mentira. Pai amoroso. Marido ideal. Filho exemplar. Genro perfeito. Amante generoso. Amigo fiel. Em suma, insuspeito. Chefe duma casa em que a mãe faz o dever-de-casa da filha, também a caligrafia do garoto com preguiça e mimo. Uma mulher atenciosa, um casal de filhos. Uma sala com sofá imenso e confortável defronte à TV de última geração. Médico inteligente. Físico invejado. Faure era uma espécie de tudo aquilo que se deseja ser. Quando em verdade nunca havia sido médico, sequer passado em um vestibular de medicina.

Etimologicamente adversário remete à luta, oposição, antagonismo. Logo, de que luta se trata L’adversaire? Da luta pela identidade. Jean-Marc Faure não é somente o avesso da vida idealizada, mas também a denúncia do vazio de um projeto de vida homogeneizante. No sentido de um alvo a ser atingido: tenha um casal de filhos, um emprego estável, seja um bom filho e bom pai, além de bom marido e amante discreto etc. Um caminho da felicidade. Uma proposta da melhor vida. Do tipo plante uma árvore, escreva um livro e tenha filhos. Seja prudente. Uma receita de vida que é vazia porque homogênea demais.

De qualquer sorte, por que afirmo que a problemática central é a da identidade? Porque a identidade é posta em questão quando algo que se supõe fixo e coerente é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza. Se há algo pior do que ser desmascarado, é não ser desmascarado. Assim se inicia L’adversaire. O que equivale dizer que é dentre as maiores verdades que residem as maiores mentiras. São elas que alicerçam o edifício incólume da felicidade. O desafio da verdade pode ser lido como a verdade identitária.

Tracemos dois planos dessa verdade: o primeiro plano, do eu; segundo, do cotidiano. Tracemos o operante dessa verdade: o sujeito moderno. Tracemos o mundo dessa verdade: a troca de mercadorias, o capitalismo. No segundo plano, o sujeito atualiza sua identidade baseada numa concepção de uma essência que emerge pela primeira vez quando se nasce e com ele se desenvolve permanecendo sempre o mesmo. O primeiro plano é das crenças, das verdades essenciais do eu, de seu centro. A luta é sempre a luta da identidade. O sujeito moderno pode revirar a sua vida para manter suas verdades. Acabar um casamento por achar que este não era como esperava. Trancar uma universidade porque sente intrinsecamente que ele não é para isso. É a luta da manutenção da verdade identitária (a noção de si que constrói a certeza do eu distinto dos outros). Como bem aponta Freud e Lacan, esse eu ideal (imagem do eu dotada de todas as perfeições) é sempre acometido pelo ideal do eu (efeito do discurso dos pais, que abandona qualquer consciência crítica dessa imagem idealizada). Jean-Marc Faure perversificou essa dualidade. No sentido de que ele fez perdurar durante anos a mentira de si mesmo como fundamento de sociabilidade.

Assim como um sujeito dito normal pode ir até as últimas conseqüências para garantir suas verdades sobre si mesmo, Jean-Marc Faure foi até o fim para garantir suas mentiras sobre si mesmo. No momento nevrálgico, no espaço limítrofe de denúncia de sua mentira, ele decide matar a todos que poderiam jogar em sua cara aquilo que lhe era fundamento: a perfeição dos olhos dos outros.

Jean-Marc Faure vai além do relato fictício de um “homem de bem” francês. Ele denuncia o indenunciável modo de vida liberal. Ele provoca suspeita dos insuspeitáveis “pais de família”. Puxa o tapete vermelho dos rótulos vazios. Jean-Marc Faure é a inquietação defronte tanta quietude.

- Você será muito infeliz.

- É a única verdade em minha vida.

(Diálogo entre Jean-Marc Faure e seu ex-colega de universidade)

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