Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Tuesday, April 14, 2009

Memórias Paternais.




Escrevi esse texto depois de entrar em contato com um escrito intitulado “CAGA O CU MAIS ALVO MERDA PURA”, assinado por Jean Maldit. É um escrito de contos diversos. Segue abaixo minhas impressões sobre o primeiro conto.
Ah! O quadro é de F. Goya.


Memórias Paternais.

Incesto. Pai como representante da autoridade, como aquele que discursa sobre a moralidade e os bons costumes. Mãe como elo afetivo entre a angústia da manutenção de uma família de aparências e o porvir de uma doce vida até então bem desconhecida. Um filho que não se afirma enquanto sujeito por medo do pai, preferindo assim as asas da mãe. E uma irmã que transgrediu a ordem familiar, rachou definitivamente a solidez da tradição.

A família nuclear representou, durante dois séculos, o XVIII e o XIX, a concretização de um projeto de sociedade bem delimitado. Ela foi transformada num dispositivo de controle e, ao mesmo tempo, numa correia de transmissão de uma série de acontecimentos. Era ela, a família, a responsável por manter firme e forte uma dada conjuntura política. Porém toda ordem é perversa. O Pai, representante legítimo da Lei dentro do lar, é ao mesmo tempo o exemplo a ser seguido como a decepção total. O mesmo Pai que mantém a ordem da casa – financeira, por exemplo – é também o que se excede em jogos ou bebidas. É assim também o Estado que se por um lado mantém uma ordem minimamente aceitável, com um transporte coletivo em marcha ou com a disponibilização de uma condição mínima de funcionamento de escolas e hospitais, deixa à própria sorte um par de seres humanos, limitando-se a catalogá-los em órgãos específicos, como o Instituto Médico Legal.

A sociedade moderna funda-se assim numa espécie de rede bem delimitada, na qual a família figura como um dispositivo neutralizante da conjuntura sociopolítica, isto é, a família deve ser o microcosmo da sociedade, uma espécie de ponto cego da História, onde paradoxalmente serão reproduzidas as mais firmes raízes do social. É assim que a família nuclear moderna tem seu correlato nas instituições pedagógicas de correção, como o Hospício, a Escola e a Prisão. Como bem mostrou Sigmund Freud, a subjetividade humana pode ser compreendida a partir da realidade familiar, o mito do incesto e a revolta contra o Pai como elementos fundamentais do psiquismo humano.

Os grandes romancistas souberam que os conflitos familiares são, em verdade, conflitos coletivos, sociais, históricos, econômicos etc. Basta ler um Dostoiévski, um Machado de Assis ou um Kafka. A maior arma da literatura não é ser uma metáfora da realidade, mas ela própria desdobrar a realidade de uma outra forma, constituindo-se assim como um campo de intensidade bastante produtivo. A questão, portanto, não é se da ordem familiar e moderna podemos entender diretamente a subjetividade, como fez Freud. Mas, em nossa situação atual, como é que se atravessa, no sujeito, a dissolução da família e a derrocada do Poder do Pai?

Tem-se, então, como no conto, uma produção de subjetividade completamente alheia aos acontecimentos. Um filho que conhece o pai apenas pelo discurso da mãe. Um filho que em nenhum momento enfrenta o pai, prefere construir possíveis fugas. Um sujeito, logo, que se define muito mais pela esquiva do que pelo enfrentamento. Aparentemente no fim de tudo, opta, sem nenhum pesar, por abandonar o seu lar. Não procurou conversar a fundo com mãe e irmã, não procurou o Pai para enfrentá-lo, não se implicou nem com a sua própria história de vida.

Esse é o retrato de uma cultura do narcisismo, de uma sociedade espetacular. Onde não sofrer é o lema. Onde o mal-estar é sempre pontual, fácil de ser apagado. A dor é uma doença, cujos sintomas devem ser mecanicamente sanados. O protagonista poderia dizer: “Se não há como apagar as dores e os traumas sentidos pela atitude de meu pai, há como, ao menos, livrar a mim mesmo desse pesar. Salve-se quem puder! E eu posso!”.


Memórias Paternais é a história de um sujeito que narra apenas por considerar que seria mais adequado que ele o fizesse. Ele próprio não acha isso interessante nem mesmo necessário. Sente, talvez, que é preciso fazer para que ele não fique mal na fita. É preciso mostrar que ele de fato se revoltou contra a atitude do pai. O detalhe é que ele o fez internamente, sem modificar nada. É fácil esconder isso só dizendo que se revoltou. É como prestar contas a algo que ele nem próprio tem noção.

Numa sociedade em que vivemos, onde todas as instituições estão passando por mudanças fundamentais, dentre elas a família, é essa forma de subjetivação que emerge: um sujeito descompromissado consigo próprio e com sua vida. Curiosa ironia: na modernidade, estar fora-de-si era significante de internação psiquiátrica, o louco era sempre um sujeito fora de si mesmo; o dentro-de-si, por sua vez, era o modo operacional da sociabilidade. Hoje, na pós-modernidade?, o ‘fora-de-si’ é padrão de normalidade. Falar de si mesmo é como falar de um outro, é como ser um espectador da própria vida. Alienado do processo de constituição de si mesmo. O normal é estar ‘fora-de-si’, para lá do sofrimento subjetivo, para lá da implicação com sua própria vida. Para perto do livrar-se a si próprio. Do “vejam! Eu não sou detestável!”.