Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Thursday, December 11, 2008

Émile Durkheim: a instituição como condição de possibilidade do saber sociológico.

I. Introdução: os fundadores da sociologia e a particularidade de Durkheim.

Émile Durkheim é um dos fundadores da sociologia. Quais seriam os outros? Karl Marx e Weber, dizem. Como sendo os mais lidos, pus-me a tarefa de falar um pouco do que julgo ser o mais preocupado em fundar uma ciência da sociedade, uma vez que o primeiro, Marx, tratava o conhecimento como ferramenta de ação prática e transformação social e o segundo, Weber, como forma de conhecimento do mundo moderno que impõe, sobre os sujeitos, um espaço delimitado a que se pode chamar de jaula de ferro. Tanto num quanto no outro o capitalismo é um tema central, seja como uma ética que exige uma dominação de si próprio com o fim de geração de mais-dinheiro, seja como sujeito automático fetichista da moderna sociedade produtora de mercadorias. Onde situar, portanto, Durkheim?

Vou partir de um espaço bem delimitado, seu livro intitulado As Regras do Método Sociológico, doravante RMS. É um livro fenomenal para se entender qual é o lugar da sociologia nas chamadas ciências do homem. Publicado em 1895, RMS ainda guarda em si uma potência e uma atualidade sem igual. É evidente que se pode dizer o mesmo da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Weber, e d’O Capital, de Marx. Essas três obras, em minha opinião, usando uma imagem feita agora às pressas, são como portões que abrem a reflexão moderna para aquilo que constituiria uma das maiores problemáticas do século XX: como pensar a sociedade? Como questioná-la? A partir de que lugar se deve realizar a tarefa da crítica social? Quais elementos devem ser considerados? Não desconsiderando que cada um a seu modo realizam um direcionamento específico para a reflexão social. No entanto, o solo histórico que pisam é o mesmo: é preciso conhecer a sociedade.

Mas, o que é isso, a sociedade? O que a constitui? Durkheim não opta pelo caminho aparentemente mais óbvio, ou seja, uma definição clara e objetiva do que é a sociedade. Para ele, pode-se dizer que a sociologia não é o estudo da sociedade, mas das instituições. Apesar do aparente reacionarismo, admitido inclusive por Durkheim[1], eleger a instituição como um conceito-pilar do estudo sociológico é, sim, uma revolução, ao menos a nível epistemológico, de conhecimento. Ao elencar os fatos sociais como coisas, Durkheim finca sua bandeira no terreno positivista. Isso, no entanto, será fruto de uma outra reflexão. Por ora, fiquemos com seu lado transformador, a saber, a postagem da instituição como conceito central do estudo sociológico.

Durkheim, aos escrever as RMS, trava uma luta em dois fronts: de um lado com a psicologia, de outro com a biologia. Os fatos sociais devem ser tratados como coisas, talvez este seja o grande postulado de Durkheim. É a partir desse axioma que se edifica todo o seu edifício discursivo. Questionemos, portanto, o que é uma coisa? É aquilo que se opõe à idéia, aquilo que pode ser conhecido de fora, aquilo que, de certa forma, possui uma objetividade clara e uma materialidade minimamente constante e conhecida. Para Durkheim, preso nas teias do positivismo cientificista da época, ou seja, imerso na preocupação de aliar um estudo social humano com os parâmetros das ciências naturais (objetividade, empirismo, provas, previsões etc.), a coisa é aquilo que só se compreende por via de observações e experimentações. O que Durkheim está tentando dizer, e o que quero que fique claro, é que a coisa deve ser estudada através de um método, ela não é algo que se possa “adquirir uma noção adequada por um simples processo de análise mental”[2]. Isto posto, considerar os fatos como coisas incorre em três tarefas básicas: 1) elaboração de um método rigoroso para entender o funcionamento das coisas; 2) desvencilhar-se do subjetivismo psicológico e do objetivismo biológico e 3) fundar, dessa forma, um espaço sociológico.

II. O método sociológico de Durkheim

Sendo assim, não obstante eu tenha antecipado a questão da luta com a psicologia e a biologia, partamos do primeiro ponto, ou seja, a elaboração de um método. O que é, pois, um método? Essa pergunta remete uma volta ao século XVI. Uma figura filosófica chamada René Descartes. Foi ele que, em duas obras fundamentais, Discurso do Método e as Regras para direção do Espírito, postulou que o método é aquilo que permite chegar a verdades claras e distintas.

Um método é sempre rigoroso, possui, assim, regras internas, um modo de funcionamento específico, que lhe dá não só fidedignidade mas também a possibilidade de o pesquisador ser variado, enquanto o tema da pesquisa nem tanto. A frase foi mal construída. Retomo: o que um método quer fazer existir é uma forma de reflexão que seja minimamente organizada e coerente e que, por conseguinte, possa ser útil a outros pesquisadores que queiram realizar essa mesma pesquisa. Um dado histórico, para ficar mais claro.

O mundo em que Descartes vivia era um mundo de incertezas. Algumas questões tinham abalado o mundo para sempre dali em diante, do século XVI e XVIII doravante. Quais questões? Cito algumas: a descoberta da América, a queda do heliocentrismo (a crença de que era o sol que girava em torno da terra), o advento da imprensa escrita, a Reforma Protestante etc. Todos esses eventos, cada um de sua forma, provocaram um descentramento sem volta do homem. A partir dali, o saber mais poderoso que a história humana já presenciou, o saber escolástico, estava finalmente abalado. Novas questões se colocavam para a humanidade. Descartes entendeu essa conjuntura como uma pergunta fundamental: como conhecer a verdade num mundo tão incerto? A verdade antes tão lógica e inconteste, pelas mãos sagradas da Igreja, onde está?

É aqui que há uma mudança fundamental na história humana e que, a meu ver, dá início à modernidade. É como se Descartes tivesse ensinado que a verdade deve ser buscada e há uma forma de fazê-lo. Ou seja, a verdade não é revelada, ela é encontrada pela Razão. É preciso, portanto, que homem racionalize para chegar à verdade. Essa racionalização deve ser levada a cabo por um método de conhecimento. É preciso ser sabedor de como encontrar a verdade. Descartes funda, com um só golpe, o sujeito do conhecimento, o objeto do conhecimento e o método. Retomei Descartes para deixar mais claro que Durkheim fala desse lugar, ou seja, de uma vertente racionalista. O que significa afirmar que Descartes aposta num conhecimento verdadeiro a partir da Razão, ou seja, a partir de um método rigoroso. É a partir dessa posição que Durkheim poderá dizer que reivindica “os direitos da razão sem recair na ideologia”[3]. Durkheim está defendendo uma teoria do conhecimento social alicerçada em si mesma, numa lógica própria e auto-explicativa, além de produtiva e capaz de ser provada.

O método de Durkheim consiste no fato de que todo fato social deve ser concebido como uma coisa. Isso significa que, para Durkheim, seu método independe da filosofia, embora tenha bastante influência dela; é objetiva, pois considera o fato como coisa e é sociológica, coloca a sociologia como ciência autônoma.

III. Para além da psicologia e da biologia: os fatos sociais.


Para a construção de uma ciência autônoma, era preciso livrar de vez o conhecimento da sociedade de duas chagas: o subjetivismo e o objetivismo.

Os fatos sociais são maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo que se lhe impõem. Desta forma, não são fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e ações; por outro lado, não são também fenômenos psíquicos, porque não têm existência somente na consciência individual ou devido a ela; constituem, para além do individuo, uma espécie distinta, externa. Ponto complexo do edifício de Durkheim esse. Vejamos o motivo.

Ele não está querendo dizer que os fatos sociais não sejam psíquicos. Tampouco que não tenham reverberações orgânicas. Vejamos um exemplo. Uma peça teatral ou uma demonstração folclórica pode muito bem causar uma emoção subjetiva intensa. A iminência de um acontecimento catastrófico e socialmente importante pode levar alguém a uma série de enjôos ou dores corporais. O que Durkheim quer dizer é que os fatos sociais possuem um outro substrato, não evoluem no mesmo meio e não dependem das mesmas condições orgânicas ou psíquicas.

Os fatos sociais, portanto, têm as seguintes características: são externas em relação às consciências individuais; exercem ações coercivas sobre essas consciências e possuem um estado de independência em relação às manifestações individuais. Os fatos sociais permitem a Durkheim sair do indivíduo atomizado e isolado e entender a sociedade, ou seja, um conjunto de consciências individuais que não deve ser estudado a partir da isolação destas, mas a partir de sua reunião que forma, por sua vez, uma outra dinâmica bastante distinta[4].

Ora, mas os fatos sociais se materializam de que forma? Dá para entender que eles, na verdade, ultrapassam o indivíduo. Sendo assim, eles se materializam onde? Como?

IV. O espaço sociológico de Durkheim: a instituição.

Para Durkheim, a sociologia é o estudo das instituições[5]. As instituições são, portanto, fatos sociais. Isso quer dizer que uma escola, por exemplo, deve ser levada em consideração pelo que ela representa socialmente. Outro exemplo. As prisões. Elas não são somente um conglomerado vigiado e cercado. Elas ultrapassam o concreto e materializam um fato social, a saber, a representação de que ali é um lugar de reabilitação sócio-educativa ou um lugar que deve ser mantido seguro para que a sociedade se sinta, ela própria, segura. A questão da sociologia não é saber se os presos são felizes ou infelizes, se ali dentro passam fome ou frio, mas sim que a prisão constitui um fato social inexorável que produz efeitos práticos, coerentes e constantes.

A sociologia deve entender o funcionamento das instituições e suas gêneses. Grosso modo, essa é a tarefa de Weber em seu livro já citado e de Marx. O primeiro busca entender de que modo a ética capitalista tem suas raízes no protestantismo e o segundo qual é a célula elementar do sistema capitalista.

Com o conceito de instituição, Durkheim não somente abre um campo propriamente sociológico como também inaugura uma nova reflexão sobre a sociedade. É aqui que reside a sua originalidade, que será retomada no próximo ponto. Antes, vale dizer que é com Durkheim que a sociologia deixa de ser um anexo de qualquer outra ciência. Ela passa a ser concebida como uma ciência distinta e autônoma a partir de sua noção da especificidade da realidade social. A sociologia como compreensão dos fatos sociais.

V. O que Durkheim tornou possível para nós?

Durkheim exercita uma crítica livre em certa medida[6]. Livre porque autônoma. Uma crítica para lá do indivíduo mantém uma superioridade fundamental, ela permite que se entendam mecanismos sociais que estejam além da vontade subjetiva dos homens. Desloca, portanto, a reflexão do terreno daquilo que os homens querem para aquilo que as instituições produzem. Leva-nos, assim, para um outro patamar, o questionamento não individual, mas coletivo e institucional. O problema, para citar um exemplo, a partir de Durkheim, não está numa figura isolada, num presidente, mas sim num conjunto de instituições democráticas, numa série de representações sociais mantidas e produzidas através de vários aparelhos.

É bem verdade que Durkheim é um positivista, conservador. Coloca o crime como uma questão de saúde pública. Compara a sociedade com um corpo orgânico. É um homem de Estado. É um médico social[7]. Há um sem-número de razões para execrar e criticar Durkheim. Mas é preciso ter cuidado para não jogar a água com a criança fora.

Durkheim tornou possível para nós um questionamento altamente crítico, uma tarefa extremamente necessária, a saber, o estudo das instituições de nossa sociedade. Ou, ao menos, o questionamento delas e dela. Se hoje algo falta é o questionamento da sociedade. Vivemos num período onde a sociedade já não se questiona a si própria. Essa dobra reflexiva está presente em Durkheim.


[1] “O nosso método não tem nada de revolucionário. É até, de certa forma, consevador, pois considera os fatos sociais como coisas em que a natureza, por mais flexível e maleável que seja, não se modifica à vontade”. (RMS – Prefácio à primeira edição)
[2] RMS, Prefácio à segunda edição.
[3] RMS, Capítulo Terceiro.
[4] “Quando o sociólogo empreende a exploração de uma ordem qualquer de fatos sociais, deve esforçar-se por considerá-los sob um ângulo em que eles se apresentem isolados de suas manifestações individuais”. RMS, Capítulo Segundo.
[5] “A sociologia pode então ser definida como: a ciência das instituições, da sua gênese e do seu funcionamento”. RMS, Prefácio à Segunda Edição.
[6] “O papel da sociologia deve justamente consiste em libertar-nos de todos os partidos, não tanto opondo uma doutrina às doutrinas, mas fazendo que os espíritos tomem, perante estas questões, uma atitude especial que só a ciência pode dar pelo contato direto com as coisas. Só ela, com efeito, pode ensinar a tratar com respeito, mas sem fetichismo, as instituições históricas, sejam elas quais forem, fazendo-nos sentir o que têm ao mesmo tempo de necessário e de provisório, a sua capacidade de resistência e a sua infinita variabilidade”. RMS, Conclusão.
[7] “O dever do homem d Estado não é empurrar violentamente as sociedades para um ideal que se lhe afigura sedutor, antes o seu papel é o do médico: prevenir a eclosão das doenças com uma boa higiene e, quando se declaram, procurar curá-las”. RMS, Capítulo Terceiro.

No comments: