Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Tuesday, December 30, 2008

Uma nota sobre dois cursos recém-publicados de Michel Foucault.





Na segunda metade de 2008, a editora Martins Fontes publicou mais dois cursos de Michel Foucault: Segurança, Território e População [STP] (1977-78) e Nascimento da Biopolítica [NB] (1978-79). A mesma editora já tinha publicado outros três cursos: O poder psiquiátrico (1973-74), Os Anormais (1975), Em defesa da sociedade (1976), Hermenêutica do Sujeito (1982). Para fechar definitivamente o ciclo, faltam mais dois. Um outro, é importante sublinhar, faz parte ainda lá do começo.


A publicação desses cursos que Foucault deu no Collège de France cumpre um papel importantíssimo. Para deixar claro as três fases da obra de Foucault. A primeira fase da arqueologia do saber [cuja preocupação é com as formações discursivas e as epistemes], a segunda fase da genealogia do poder [cuja preocupação é com as tecnologias de poder envolvendo a loucura e a sexualidade] e a terceira da história do sujeito [cujo objetivo é uma ética do sujeito através de um resgate da governamentalidade]. Pouco se conhece esse último Foucault, que trouxe em questão o liberalismo clássico, o ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano como paradigmas gerais da biopolítica.


Tanto STP quanto NB mostram um Foucault numa época de engajamento político interessante. Envolvido inteiramente na revolução iraniana e em outras questões. É interessante que Foucault sai dos trilhos e o curso que deveria ser sobre biopolítica acaba sendo sobre o liberalismo. Um dos poucos momentos onde Foucault está claramente desenvolvendo um saber imerso nas lutas cotidianas. Apesar de serem dois volumes extremamente caros, vale a pena adquirir. Fica aqui a indicação.

Thursday, December 18, 2008

O Capitalismo de Desastre de Naomi Klein, ou seria o nosso?



Contrariando as regras de domesticação da escrita ou o manual de asseptização do pensamento, mais conhecido como “Regras da ABNT”[1], começo esse texto pela crítica. Ou seja, em vez de uma introdução, parágrafos logicamente construídos, apresentação da obra etc., misturo as ordens.

Para um leitor de Marx, o que é o meu caso, o capitalismo não significa somente um sistema historicamente determinado que consiste na exploração do homem pelo homem. Também não significa apenas, outrossim, a desvalorização dos valores cujos únicos pórticos pseudo-transcendentais são o dinheiro e o trabalho. Da mesma forma, falar em capitalismo não é falar de uma vontade subjacente abstrata e imanente ao gênero humano. Por fim, depois de Marx o capital não é controlado e, o mais importante, não é controlável. Após Marx, é tão ridículo conceber um capitalismo regulado como o é entender que o mercado pode se auto-regular através de leis igualmente infame como a da oferta e procura.

O que embolou o meio campo é que entre Marx e nós há uma crise mundial (1929, bloco ocidental-capitalista), uma revolução traída (1917-1950, período de modernização absurdamente autoritária da União Soviética), uma revolução silenciada (1919, Alemanha, morte sumária de Rosa Luxemburgo e seu grupo). A lista é longa. No entanto, a pedra no sapato se chama John Maynard Keynes. É ele quem implementou e teorizou uma política econômica vitoriosa nos períodos de recessão, o chamado Estado de Bem-Estar Social ou [i]Warfare State[/i], como diria Marcuse. Keynes admite que há esferas públicas das quais o Estado deve prestar contas, enquanto outros setores da economia devem ser regulados pela mão invisível do mercado. Evidentemente que sua teoria econômica é muito mais profícua, aqui se trata de um recorte resumido.

O que estou querendo dizer é que a via de Keynes – nem capitalista nem socialista ou, em certa medida, capitalista no mercado, socialista nas necessidades básicas como escola, hospital etc. – é hoje dominante, embora seu apogeu tenha se dado com Roosevelt e o New Deal, programa para tirar os E.U.A da crise jamais vista. Trocando em miúdos, a idéia de que não é o capitalismo que é o problema, mas uma certa apropriação desse sistema. A questão não é o poder, mas quem está no poder. É como se tanto o capitalismo selvagem quanto o socialismo real fossem duas faces de um mesmo totalitarismo a ser execrado. Assim, Keynes não acreditava nem na estatização marxista nem no laissez-feire neoliberal. Se há algum lugar de onde Naomi Klein fala, é deste[2]. Ou seja, ela não critica o capitalismo, mas sim o capitalismo de desastre. Antes mesmo de esse ser um dispositivo conceitual que lhe permite enxergar e analisar o mundo atual, é também um nome que delimita seu campo de ação ideológico.

Antes de especificar ainda mais a crítica, para posteriormente passar aos pontos extremamente positivos da obra, convém estabelecer o que julgo ser o capitalismo, a saber, um sistema social cujo paradigma fundamental é o fetichismo da mercadorias, a reificação. Através da produção de mercadorias, célula elementar da produção capitalista, o capitalismo se consolida não somente na esfera política ou só na econômica, mas também na esfera da produção de subjetividade. O capitalismo não é criticável pelos seus exageros, como parece entender Naomi Klein, mas pela sua dinâmica imanente de produção e destruição, de miséria e opulência, de dissociação. O capitalismo não existe numa convivência pacífica com modos de deliberação democráticos, com organizações descentralizadas e decisões horizontais. Ou seja, aquilo que a Naomi Klein entende como exagero é, na verdade, a sombra constante do sistema produtor de mercadorias. A questão não está, portanto, como parece crer Klein, no fundamentalismo das idéias[3], mas no processo produtivo e distributivo da sociedade. Não só a nível econômico, mas também a nível político, entendido como esfera social de decisão coletiva e de debate democrático.

Como um latino-americano, calejado da tentativa socialista democrática do Chile, cuja imagem do palácio do governo, de La Moneda, em 1973, em chamas com seu presidente lá dentro vociferando contra o totalitarismo do capital[4] constitui um retrato fiel da tolerância capitalista, e também visto a recém tentativa de golpe no Governo de Hugo Chávez na Venezuela já não é factível crer num capitalismo aliado com democracia e com distribuição de renda. Ou seja, o nosso 11 de Setembro se deu em 1973 e não em 2001, com a queda da última tentativa socialista democrática de nosso continente.

A grande crítica a ser feita ao excelente livro de Naomi Klein é essa: a crítica não se volta ao sujeito automático do capital, como dizia Marx, mas aos exageros quase perversos de um grupo de corporações que não tem coração nem bom senso. Klein chega a ser risível, neste sentido:

“Se nos seis meses que se seguiram à invasão aos iraquianos se vissem bebendo água limpa dos canos da Bechtel, suas casas iluminadas pelas lâmpadas da GE, seus enfermos tratados nos hospitais higiênicos construídos pela Parsons, suas ruas patrulhadas pela polícia competente treinada da DyrnCorp, muitos cidadãos (embora nem todos) teriam, provavelmente, superado sua raiva por terem sido excluídos do processo de reconstrução”[5].

Neste parágrafo Klein está mencionando a reconstrução do Iraque. Que doce ingenuidade dela! Possível para quem não sentiu os duros golpes do totalitarismo terceiro-mundista. Há tantos outros trechos em que fica devidamente claro que Klein não se questiona, de modo algum, sobre a dinâmica inerente do capital, da sua incontrolabilidade social e de sua destruição produtiva. Exceto em lampejos fugazes, Klein jamais se questiona, ao longo das mais de 560 páginas de seu livro, sobre o liberalismo. O problema para ela constitui somente o neoliberalismo.

Essa mudança de campo de combate, apesar dos defeitos que tentei mostrar, também faz surgir algo curioso. Em seu livro, Klein realiza uma crítica de dentro do capitalismo. Suas fontes, New York Times, CNN, foram-me estranhas, no início. Contudo ela consegue, com astúcia invejável, retirar de dentro dos meios capitalistas críticas consistentes e duras.

Há pelo menos três coisas a salientar nessa grande obra, além da crítica já feita. A primeira é como Klein entende o neoliberalismo, a segunda como ela utiliza a tortura como metáfora e a terceira a introdução de um termo pouco analisado, a saber, as catástrofes ecológicas. Vamos lá.

No primeiro ponto, Klein entende que há uma tríade ideológica do neoliberalismo que consiste em um ataque à esfera pública em busca de sua eliminação, total liberdade para as corporações com anuência total do Estado e um gasto social mínimo com necessidades básicas da população. É aqui que ela crava o seu conceito[6]. O grande mérito de Klein é entender que o neoliberalismo, que teve seu apogeu no golpe de Pinochet no Chile, começou uma tendência geral social que desencadearia um sistema político econômico extremamente negativo atualmente. A retirada do Estado para que as empresas privadas tomassem conta e lucrassem com serviços essenciais (como água, energia, telefone, escola etc.) se observa, atualmente, na reconstrução de grandes metrópoles devastadas por catástrofes. Ela cita bem o exemplo de Nova Orleans que, após o desastre, teve suas escolas públicas drasticamente diminuídas e, em cima dos escombros, o que se viu não foi uma reconstrução, mas uma oportunidade mercadológica de implementar políticas neoliberais. Em uma de suas passagens ingênuas, Klein diz que todos nós, apesar de vermos cotidianamente a exclusão de outras pessoas do cuidado com a saúde, por exemplo, acreditamos que num desastre tudo muda e surge uma humanidade cujo substrato é a ajuda ao próximo. Presenciando o Katrina e o tsunami, Klein deixa essa idéia de lado e entende que a adminstração do desastre é apenas a intensificação das políticas neoliberais.

No segundo ponto, Klein traça uma linha que vai da tortura individual em voga nas ditaduras militares do século passado às invasões do Iraque pelos Estados Unidos em 2005. Na esteira das pesquisas de um psiquiatra chamado Ewen Cameron e dos manuais da CIA de tortura, Klein entende que a tarefa dos Estados Unidos, iniciada em 1973 no Chile, e tendo como atual ápice o Iraque, era a de tortura um coletivo. Para Cameron, a tortura deveria limpar a mente do sujeito, fazê-la ficar vazia para que se colocassem elementos novos, criasse uma mente-modelo. Através de privações de sentido, torturas direcionadas ao corpo e buscas para destruir a personalidade, Cameron tinha como objetivo destruir completamente a personalidade para construir uma outra. É assim que, para ela, o Iraque seguiu a cartilha da tortura: primeiro perdeu os ouvidos pelas explosões cotidianas, depois foi dopado (a maioria das farmácias de Bagdá vendiam todo os seus estoques de remédios para dormir e antidepressivos), ao mesmo tempo em que sua identidade era destruída (vários museus iraquianos, na verdade museus humanos, pois muita coisa que ali existia fazia parte da história de todos nós, foram sumariamente saqueados ou destruídos). O que estava em jogo no Iraque era destruir a infra-estrutura, aterrorizar o país inteiro. Provocar medo e pavor. Com o objetivo de construir uma cidade-modelo.

No terceiro ponto, Klein com muita habilidade mostra que os recentes desastres ecológicos foram vistos, não só pelos governos mas também pelas empresas corporativas, como oportunidades de lucrar cada vez mais. O que Klein chama de “apartheid do desastre” é efetivamente isso: em vez de uma reconstrução social, um espaço de mais-lucro. Ela dá como exemplo os praias subjugadas pelas águas do tsunami que levaram junto consigo muitos pescadores e familiares. Depois do desastre, muitos deles não puderam retornar ao local de origem, pois este já tinha sido devidamente militarizado para construção de resorts e hotéis de luxo. Era a construção de um turismo implacável entrando no lugar de comunidade de pescadores e necessidades sociais vitais.

Por fim, o livro de Klein é extremamente denso, repleto de elucubrações jornalísticas de dados essenciais. Sua força é, ao mesmo tempo, sua fraqueza. Ou seja, na medida em que é uma crítica ferrenha ao neoliberalismo é também um resgate esperançoso num sistema capitalista mais humano e democrático. Fechando, assim, uma discussão que hoje é ainda mais essencial: o capitalismo é ainda viável? Klein responde categoricamente que o capitalismo de desastre não. Ainda assim, este é um livro de leitura obrigatória para quem quer que queira entender qual é a dinâmica geopolítica e socioeconômica do mundo atual.
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[1] Melhor seria falar em “Regras de Conduta” ou “Passos para uma elegantização inócua do pensamento”. Qualquer termo criado espontaneamente serve para ilustrar essa padronização da crítica.
[2] “Eu não estou argumentando que todas as formas de sistema de mercado são inerentemente violentas. É possível a existência de uma economia de mercado que não exija tamanha brutalidade nem imponha esse tipo de purismo ideológico. Um mercado livre para produtos de consumo pode coexistir com um sistema público de saúde, com escolas públicas, e com um amplo segmento da economia controlada pelo Estado – como uma empresa petrolífera nacionalizada, por exemplo. É ainda factível exigir das corporações que paguem salários decentes e respeitem os direitos dos trabalhadores de formar sindicatos, e dos governos que cobrem seus impostos e redistribuam a riqueza a fim de reduzir as desigualdades que caracterizam o Estado corporativo. Os mercados não precisam ser fundamentalistas”. (Grifo meu). KLEIN, N. A doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. P. 30
[3] Em vários momentos se percebe que a crítica de Naomi Klein é a um capitalismo fundamentalista e não ao capitalismo.
[4] “A batalha do Chile não terminou. Eles têm a força. Poderão nos avassalar. Porém não se detêm os progressos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos. Sigam sabendo vocês que muito mais cedo do que tarde de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor”. (Salvador Allende 11/09/1973), discurso de dentro do palácio em chamas.
[5] P. 421.
[6] “Eu chamo esses ataques orquestrados à esfera pública, ocorridos no auge de acontecimentos catastróficos, e combinados ao fato de que os desastres são tratados como estimulantes oportunidades de mercado, de ‘capitalismo de desastre’”. P. 15

Thursday, December 11, 2008

Émile Durkheim: a instituição como condição de possibilidade do saber sociológico.

I. Introdução: os fundadores da sociologia e a particularidade de Durkheim.

Émile Durkheim é um dos fundadores da sociologia. Quais seriam os outros? Karl Marx e Weber, dizem. Como sendo os mais lidos, pus-me a tarefa de falar um pouco do que julgo ser o mais preocupado em fundar uma ciência da sociedade, uma vez que o primeiro, Marx, tratava o conhecimento como ferramenta de ação prática e transformação social e o segundo, Weber, como forma de conhecimento do mundo moderno que impõe, sobre os sujeitos, um espaço delimitado a que se pode chamar de jaula de ferro. Tanto num quanto no outro o capitalismo é um tema central, seja como uma ética que exige uma dominação de si próprio com o fim de geração de mais-dinheiro, seja como sujeito automático fetichista da moderna sociedade produtora de mercadorias. Onde situar, portanto, Durkheim?

Vou partir de um espaço bem delimitado, seu livro intitulado As Regras do Método Sociológico, doravante RMS. É um livro fenomenal para se entender qual é o lugar da sociologia nas chamadas ciências do homem. Publicado em 1895, RMS ainda guarda em si uma potência e uma atualidade sem igual. É evidente que se pode dizer o mesmo da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Weber, e d’O Capital, de Marx. Essas três obras, em minha opinião, usando uma imagem feita agora às pressas, são como portões que abrem a reflexão moderna para aquilo que constituiria uma das maiores problemáticas do século XX: como pensar a sociedade? Como questioná-la? A partir de que lugar se deve realizar a tarefa da crítica social? Quais elementos devem ser considerados? Não desconsiderando que cada um a seu modo realizam um direcionamento específico para a reflexão social. No entanto, o solo histórico que pisam é o mesmo: é preciso conhecer a sociedade.

Mas, o que é isso, a sociedade? O que a constitui? Durkheim não opta pelo caminho aparentemente mais óbvio, ou seja, uma definição clara e objetiva do que é a sociedade. Para ele, pode-se dizer que a sociologia não é o estudo da sociedade, mas das instituições. Apesar do aparente reacionarismo, admitido inclusive por Durkheim[1], eleger a instituição como um conceito-pilar do estudo sociológico é, sim, uma revolução, ao menos a nível epistemológico, de conhecimento. Ao elencar os fatos sociais como coisas, Durkheim finca sua bandeira no terreno positivista. Isso, no entanto, será fruto de uma outra reflexão. Por ora, fiquemos com seu lado transformador, a saber, a postagem da instituição como conceito central do estudo sociológico.

Durkheim, aos escrever as RMS, trava uma luta em dois fronts: de um lado com a psicologia, de outro com a biologia. Os fatos sociais devem ser tratados como coisas, talvez este seja o grande postulado de Durkheim. É a partir desse axioma que se edifica todo o seu edifício discursivo. Questionemos, portanto, o que é uma coisa? É aquilo que se opõe à idéia, aquilo que pode ser conhecido de fora, aquilo que, de certa forma, possui uma objetividade clara e uma materialidade minimamente constante e conhecida. Para Durkheim, preso nas teias do positivismo cientificista da época, ou seja, imerso na preocupação de aliar um estudo social humano com os parâmetros das ciências naturais (objetividade, empirismo, provas, previsões etc.), a coisa é aquilo que só se compreende por via de observações e experimentações. O que Durkheim está tentando dizer, e o que quero que fique claro, é que a coisa deve ser estudada através de um método, ela não é algo que se possa “adquirir uma noção adequada por um simples processo de análise mental”[2]. Isto posto, considerar os fatos como coisas incorre em três tarefas básicas: 1) elaboração de um método rigoroso para entender o funcionamento das coisas; 2) desvencilhar-se do subjetivismo psicológico e do objetivismo biológico e 3) fundar, dessa forma, um espaço sociológico.

II. O método sociológico de Durkheim

Sendo assim, não obstante eu tenha antecipado a questão da luta com a psicologia e a biologia, partamos do primeiro ponto, ou seja, a elaboração de um método. O que é, pois, um método? Essa pergunta remete uma volta ao século XVI. Uma figura filosófica chamada René Descartes. Foi ele que, em duas obras fundamentais, Discurso do Método e as Regras para direção do Espírito, postulou que o método é aquilo que permite chegar a verdades claras e distintas.

Um método é sempre rigoroso, possui, assim, regras internas, um modo de funcionamento específico, que lhe dá não só fidedignidade mas também a possibilidade de o pesquisador ser variado, enquanto o tema da pesquisa nem tanto. A frase foi mal construída. Retomo: o que um método quer fazer existir é uma forma de reflexão que seja minimamente organizada e coerente e que, por conseguinte, possa ser útil a outros pesquisadores que queiram realizar essa mesma pesquisa. Um dado histórico, para ficar mais claro.

O mundo em que Descartes vivia era um mundo de incertezas. Algumas questões tinham abalado o mundo para sempre dali em diante, do século XVI e XVIII doravante. Quais questões? Cito algumas: a descoberta da América, a queda do heliocentrismo (a crença de que era o sol que girava em torno da terra), o advento da imprensa escrita, a Reforma Protestante etc. Todos esses eventos, cada um de sua forma, provocaram um descentramento sem volta do homem. A partir dali, o saber mais poderoso que a história humana já presenciou, o saber escolástico, estava finalmente abalado. Novas questões se colocavam para a humanidade. Descartes entendeu essa conjuntura como uma pergunta fundamental: como conhecer a verdade num mundo tão incerto? A verdade antes tão lógica e inconteste, pelas mãos sagradas da Igreja, onde está?

É aqui que há uma mudança fundamental na história humana e que, a meu ver, dá início à modernidade. É como se Descartes tivesse ensinado que a verdade deve ser buscada e há uma forma de fazê-lo. Ou seja, a verdade não é revelada, ela é encontrada pela Razão. É preciso, portanto, que homem racionalize para chegar à verdade. Essa racionalização deve ser levada a cabo por um método de conhecimento. É preciso ser sabedor de como encontrar a verdade. Descartes funda, com um só golpe, o sujeito do conhecimento, o objeto do conhecimento e o método. Retomei Descartes para deixar mais claro que Durkheim fala desse lugar, ou seja, de uma vertente racionalista. O que significa afirmar que Descartes aposta num conhecimento verdadeiro a partir da Razão, ou seja, a partir de um método rigoroso. É a partir dessa posição que Durkheim poderá dizer que reivindica “os direitos da razão sem recair na ideologia”[3]. Durkheim está defendendo uma teoria do conhecimento social alicerçada em si mesma, numa lógica própria e auto-explicativa, além de produtiva e capaz de ser provada.

O método de Durkheim consiste no fato de que todo fato social deve ser concebido como uma coisa. Isso significa que, para Durkheim, seu método independe da filosofia, embora tenha bastante influência dela; é objetiva, pois considera o fato como coisa e é sociológica, coloca a sociologia como ciência autônoma.

III. Para além da psicologia e da biologia: os fatos sociais.


Para a construção de uma ciência autônoma, era preciso livrar de vez o conhecimento da sociedade de duas chagas: o subjetivismo e o objetivismo.

Os fatos sociais são maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de um poder coercitivo que se lhe impõem. Desta forma, não são fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e ações; por outro lado, não são também fenômenos psíquicos, porque não têm existência somente na consciência individual ou devido a ela; constituem, para além do individuo, uma espécie distinta, externa. Ponto complexo do edifício de Durkheim esse. Vejamos o motivo.

Ele não está querendo dizer que os fatos sociais não sejam psíquicos. Tampouco que não tenham reverberações orgânicas. Vejamos um exemplo. Uma peça teatral ou uma demonstração folclórica pode muito bem causar uma emoção subjetiva intensa. A iminência de um acontecimento catastrófico e socialmente importante pode levar alguém a uma série de enjôos ou dores corporais. O que Durkheim quer dizer é que os fatos sociais possuem um outro substrato, não evoluem no mesmo meio e não dependem das mesmas condições orgânicas ou psíquicas.

Os fatos sociais, portanto, têm as seguintes características: são externas em relação às consciências individuais; exercem ações coercivas sobre essas consciências e possuem um estado de independência em relação às manifestações individuais. Os fatos sociais permitem a Durkheim sair do indivíduo atomizado e isolado e entender a sociedade, ou seja, um conjunto de consciências individuais que não deve ser estudado a partir da isolação destas, mas a partir de sua reunião que forma, por sua vez, uma outra dinâmica bastante distinta[4].

Ora, mas os fatos sociais se materializam de que forma? Dá para entender que eles, na verdade, ultrapassam o indivíduo. Sendo assim, eles se materializam onde? Como?

IV. O espaço sociológico de Durkheim: a instituição.

Para Durkheim, a sociologia é o estudo das instituições[5]. As instituições são, portanto, fatos sociais. Isso quer dizer que uma escola, por exemplo, deve ser levada em consideração pelo que ela representa socialmente. Outro exemplo. As prisões. Elas não são somente um conglomerado vigiado e cercado. Elas ultrapassam o concreto e materializam um fato social, a saber, a representação de que ali é um lugar de reabilitação sócio-educativa ou um lugar que deve ser mantido seguro para que a sociedade se sinta, ela própria, segura. A questão da sociologia não é saber se os presos são felizes ou infelizes, se ali dentro passam fome ou frio, mas sim que a prisão constitui um fato social inexorável que produz efeitos práticos, coerentes e constantes.

A sociologia deve entender o funcionamento das instituições e suas gêneses. Grosso modo, essa é a tarefa de Weber em seu livro já citado e de Marx. O primeiro busca entender de que modo a ética capitalista tem suas raízes no protestantismo e o segundo qual é a célula elementar do sistema capitalista.

Com o conceito de instituição, Durkheim não somente abre um campo propriamente sociológico como também inaugura uma nova reflexão sobre a sociedade. É aqui que reside a sua originalidade, que será retomada no próximo ponto. Antes, vale dizer que é com Durkheim que a sociologia deixa de ser um anexo de qualquer outra ciência. Ela passa a ser concebida como uma ciência distinta e autônoma a partir de sua noção da especificidade da realidade social. A sociologia como compreensão dos fatos sociais.

V. O que Durkheim tornou possível para nós?

Durkheim exercita uma crítica livre em certa medida[6]. Livre porque autônoma. Uma crítica para lá do indivíduo mantém uma superioridade fundamental, ela permite que se entendam mecanismos sociais que estejam além da vontade subjetiva dos homens. Desloca, portanto, a reflexão do terreno daquilo que os homens querem para aquilo que as instituições produzem. Leva-nos, assim, para um outro patamar, o questionamento não individual, mas coletivo e institucional. O problema, para citar um exemplo, a partir de Durkheim, não está numa figura isolada, num presidente, mas sim num conjunto de instituições democráticas, numa série de representações sociais mantidas e produzidas através de vários aparelhos.

É bem verdade que Durkheim é um positivista, conservador. Coloca o crime como uma questão de saúde pública. Compara a sociedade com um corpo orgânico. É um homem de Estado. É um médico social[7]. Há um sem-número de razões para execrar e criticar Durkheim. Mas é preciso ter cuidado para não jogar a água com a criança fora.

Durkheim tornou possível para nós um questionamento altamente crítico, uma tarefa extremamente necessária, a saber, o estudo das instituições de nossa sociedade. Ou, ao menos, o questionamento delas e dela. Se hoje algo falta é o questionamento da sociedade. Vivemos num período onde a sociedade já não se questiona a si própria. Essa dobra reflexiva está presente em Durkheim.


[1] “O nosso método não tem nada de revolucionário. É até, de certa forma, consevador, pois considera os fatos sociais como coisas em que a natureza, por mais flexível e maleável que seja, não se modifica à vontade”. (RMS – Prefácio à primeira edição)
[2] RMS, Prefácio à segunda edição.
[3] RMS, Capítulo Terceiro.
[4] “Quando o sociólogo empreende a exploração de uma ordem qualquer de fatos sociais, deve esforçar-se por considerá-los sob um ângulo em que eles se apresentem isolados de suas manifestações individuais”. RMS, Capítulo Segundo.
[5] “A sociologia pode então ser definida como: a ciência das instituições, da sua gênese e do seu funcionamento”. RMS, Prefácio à Segunda Edição.
[6] “O papel da sociologia deve justamente consiste em libertar-nos de todos os partidos, não tanto opondo uma doutrina às doutrinas, mas fazendo que os espíritos tomem, perante estas questões, uma atitude especial que só a ciência pode dar pelo contato direto com as coisas. Só ela, com efeito, pode ensinar a tratar com respeito, mas sem fetichismo, as instituições históricas, sejam elas quais forem, fazendo-nos sentir o que têm ao mesmo tempo de necessário e de provisório, a sua capacidade de resistência e a sua infinita variabilidade”. RMS, Conclusão.
[7] “O dever do homem d Estado não é empurrar violentamente as sociedades para um ideal que se lhe afigura sedutor, antes o seu papel é o do médico: prevenir a eclosão das doenças com uma boa higiene e, quando se declaram, procurar curá-las”. RMS, Capítulo Terceiro.

Monday, December 08, 2008

Maio de 1968: da necessidade ao desejo.

I. Introdução: opiniões ou problemáticas?

Por que se fala atualmente tanto sobre o ano de 1968 e, mais especificamente, do Maio francês? Essa escrita tem como objetivo responder essa pergunta, como objetivo geral. Mais especificamente: o que o Maio tem para nos oferecer? Quais suas novidades? Qual sua relevância política atual? Em quê 1968 nos permite entender a conjuntura política atual?

O tema é – pode-se chamar a isso de paradoxo – tortuoso. Uma boa imagem para se entender, num primeiro significado, o que é o Maio de 1968 é o de um palco onde vários protagonistas querem fazer valer a sua presença. Em certa medida, a história do Maio é a história dos pretendentes. Em uma palavra, é a história de uma pretensão. Há uma descontinuidade entre as duas frases. Na primeira quero salientar o entrismo das organizações partidárias nas movimentações práticas do Maio de 1968; na segunda quero manifestar uma tendência geral pós-1968.

Por uma questão de método que analisarei no tópico seguinte meu terreno é o segundo: que tipo de pretensão tinha o Maio de 1968? Não se pretende, não obstante, fazer do Maio um sujeito surgido a partir do nada ou dos escombros da política equivocada dos Partidos Comunistas da época. Outra linha: o Maio de 1968 representa o marco[1] de uma tendência que atualmente não pode ser ignorada por uma prática política emancipatória e radical. Será essa a hipótese dessa escrita? Talvez. Embora eu aposte numa leitura acerca do Maio de 1968, não estou preocupado em lhe dar um estatuto de verdade. Ou seja, minha preocupação aqui não é dizer que essa leitura é mais ou menos verdadeira do que qualquer outra, embora admita que algumas leituras são fenomenais[2]. É neste sentido que posso dizer que eu não trago uma opinião para ser debatida sobre o Maio de 1968, mas sim problemáticas para serem pensadas. Ouso propor, portanto, em vez de uma leitura ousada e inovadora, um conjunto de problemáticas que forcem o pensamento a pensar a atualidade. Se eu falei antes de um objetivo de escrita, apresentei com essa última frase meu objetivo político ao escrever essas palavras.

Há duas direções aqui: primeira a de problematizar o Maio de 1968, segundo a de entender o que o Maio de 1968 problematizou. Escolho pela última. Saio, portanto, do campo das opiniões e das contradições (defender se o Maio foi isso ou aquilo, representou isso ou aquilo etc.) para o campo das problematizações. Esse direcionamento ficará claro no tópico posterior. Ainda resta, nesta introdução, expor a ossatura do texto.

Após a introdução, o primeiro tópico é sobre uma questão de método que tem como objetivo mostrar de que lugar eu falo e com que objetivo. Para tanto, coloco a intenção de não chegar até o Maio de 1968, explicar seus motivos, mas partir dele, ou seja, expor suas problemáticas; o segundo ponto é conceituar o que é necessidade e o que é desejo para deixar claro a mudança efetuada no plano da política pós-1968; os dois pontos subseqüentes (a ordem necessária e desejante) visam consolidar que antes do Maio de 1968 se tinha uma ordem única de movimentação política e que o Maio vem trazer, senão uma duplicidade, uma multiplicidade na ação emancipatória; por fim uma introdução que visa raspar do solo do debate aquilo que constitui uma série de obstáculos.

Começo, a partir de agora, a explanação propriamente dita sobre o Maio de 1968.

II. Questão de método: não chegar até o Maio, mas partir dele.

Certa feita, depois de assistir a duas palestras de dois professores renomadíssimos, pelo menos dentro do ambiente da UFS (Universidade Federal de Sergipe), tive uma súbita sensação de desconforto. Pareceu-me que ambos os professores estavam engajados em uma tarefa unívoca: mostrar que o marxismo é ainda uma leitura possível. Evidentemente que esse objetivo hoje cumpre um papel necessário na conjuntura de apatia política dos estudantes. Uma das palestras era exclusivamente sobre o Maio, a outra era sobre cultura. Isso pouco importa, aqui.

Se o marxismo é ainda possível me parece uma problemática lançada pelo próprio ano 1968. É como se alguém que se lança nessa tarefa de defesa marxista estivesse num período pré-seiscentista. Uma vez que a década de 60 definitivamente abalou para sempre o edifício até então duro e coeso marxista. A meu ver, não é só preciso afirmar esse abalo como entender onde é que o marxismo foi abalado. Isso significa abrir mão das explicações econômicas que possibilitaram o aparecimento do Maio. Mais amplamente, significa abrir mão de se chegar até o Maio de 1968 e se lançar na tarefa de partir do Maio de 1968. O que significa partir dele?

Significa entender quais elementos passaram a fazer parte da movimentação política depois do Maio. A questão não é por que foram introduzidas novas problemáticas no seio da política? Parte-se de outra ordem. O fato é que foram introduzidas outras problemáticas. Quais são elas? Em que elas consistem? Que peso tem na contemporaneidade? É por isso que me parece muito mais frutífero não o que tornou o Maio possível, mas o que o Maio possibilitou surgir. Não quem fez o Maio ou de onde ele veio, mas para onde passamos a ir pós-1968, politicamente falando. Para me fazer entender melhor, usarei uma imagem: se a política pode ser entendida como um tabuleiro cujos adversários são a revolução e a ordem, cada qual com suas peças e suas jogadas, o que ocorreu em 1968 foi a introdução de novos movimentos para que se vença esse jogo.

Em suma, a questão aqui é partir das novas problemáticas lançadas pelo Maio. Antes disso, vamos entender como elas puderam ser lançadas. A partir de uma análise sobre duas figuras que vou usar como forma de elucidar o que estou tentando dizer: a necessidade e o desejo.

III. Necessidade e Desejo

O que se quer ao dizer que algo é necessário? Comumente se responde que o necessário é aquilo que denota carência. Por exemplo, o alimento é necessário porque sem ele o homem perece e deixa de viver. É uma resposta boa, mas insuficiente para o que estou tentando colocar em questão. A partir daqui vamos entender por necessidade aquilo que designa um movimento que não pode ser de outra forma. Então, em vez do alimento, o necessário passa a ser a fome. Sem a fome não há vida. A fome é uma necessidade vital. Há fome porque há vida. A fome é necessária à vida. É uma condição sem a qual a vida não existe. Outro exemplo: a morte é necessária à vida. Há vida porque há morte, e vice-versa. A necessidade tem uma relação intrínseca com a existência, o que ela quer mostrar são condições que tornam possível algo acontecer. A necessidade é muito mais uma dinâmica do que uma presença estática. A necessidade é sempre a dinâmica interna de algo. A necessidade sempre quer remeter a um movimento sem a qual não há o que está em questão. Por exemplo, a fome é um elemento dinâmico da vida, e vice-versa. Posso dar outros exemplos: a interação social é outra necessidade vital ou a sensação de segurança. Dando um passo adiante, necessidade não é uma carência, é uma inevitabilidade. Tudo aquilo que é inevitável, é-o porque é necessário. Pois se não for, não existe, não perdura, não vive.

O que se opõe à necessidade? Se ainda se estiver fincado no conceito de necessidade como carência, entender-se-á seu antípoda como o supérfluo. Já deixamos longe de nosso escopo esse tipo de argumentação. Coloquei, portanto, a necessidade no solo daquilo que é inevitável. Continuando, o que se opõe a inevitabilidade? A resposta é clara: a evitabilidade, aquilo que torna o inevitável evitável. Chamo isso de desejo, a saber, aquilo que faz com que a necessidade não seja necessária, aquilo que substitui a dinâmica necessária a uma dinâmica desejante. O desejo é aquilo que se cola na necessidade e muitas vezes se confunde com ela, embora sempre vá muito mais longe que ela. Enquanto a necessidade é estática (sem movimento) e teleológica (com um fim determinado), o desejo é plástico. Exemplificando: a fome é necessária, mas o desejo pode levar um corpo a realizar greve de fome até morrer. O desejo não faz somente o alimento ser desnecessário, mas como a própria fome, dinâmica constituinte do corpo vivo, sê-la igualmente. Desejo e necessidade estão situados em solos distintos. Usando um exemplo já dado: o desejo de comer é uma coisa, a necessidade de estar biologicamente vivo é outra. O desejo problematiza a necessidade: avança ou obstaculiza-a. O desejo pode desviar. Reproduzir a espécie faz parte da necessidade, o ato sexual é desejo. Não é uma questão de forma e conteúdo, mas uma problemática de campos de ação distintos.

Ora, mas o que tem a ver desejo e necessidade com o Maio de 1968? Entendo que ele foi o marco que tirou a atividade política do solo do necessário para o solo do desejo. Se a transformação radical da sociedade capitalista era uma necessidade passou a ser uma questão de desejo. Ele é a grande problemática inserida no corpus político. Vamos entender como isso se deu.

IV. A ordem necessária: miséria, revolução e mais-valia

Lênin considerava o imperialismo como a última fase do capitalismo, “fase superior”, segundo suas palavras. Em seu livro destinado a esse assunto ele demonstra várias vezes que a revolução proletária internacional estava batendo à porta da Europa, o cadáver do capitalismo já estava em putrefação, deixando o mau-cheiro aos narizes aguçados dos revolucionários. Poderíamos dizer, sem medo de errar, que não só para Lênin mas como para todo o marxismo da época a revolução era necessária, ou seja, inevitável. A revolução aconteceria de qualquer forma, a questão era preparar-se para tal. O debate da época na Alemanha, por exemplo, entre Rosa Luxemburgo e Bernstein era muito mais sobre o como da revolução, se por reforma ou não. A revolução era algo que estava na ordem do dia.

Na Rússia czarista, para usar um exemplo forte, reinava uma miséria monstruosa. O lema bolchevique “pão, paz e terra” denota muito bem qual era a ordem presente na Rússia: a ordem da necessidade. A revolução era algo que tinha de ser realizado. A revolução era, antes de tudo, uma reconfiguração radical da sociedade russa. Uma sociedade que não podia continuar funcionando como funcionava. A crítica central dos bolcheviques estava centrada numa questão fundamental: a mais-valia. A apropriação do sobre-trabalho por parte da ordem capitalista.

Isso tem uma série de conseqüências. É própria do marxismo soviético a idéia de que o homem é ontologicamente um ser de trabalho. O trabalho é a condição de sociabilidade, ele é o elemento fundante da sociedade. Entenda-se: o trabalho não vem antes da sociedade e nem depois, é ele que torna possível a existência em sociedade. A partir do momento em que há trabalho pode-se dizer que há sociedade ou mesmo que há humano. A problemática central de uma sociedade emancipada é a questão da libertação do trabalho. No tabuleiro marxista soviético, os adversários são o capital x trabalho. Através de uma tomada do poder pela classe revolucionária, os trabalhadores, acreditava-se realizar um passo fundamental na transformação social.

Três elementos centrais estão em jogo na problemática da ordem necessária: a miséria (a condição humana que não pode continuar sendo a mesma), a revolução (forma de movimentação social-coletiva que tem como característica histórica retirar os homens dessa condição paupérrima e levá-los a um além-histórico, cujo sujeito seria os trabalhadores – num país de maioria camponesa) e mais-valia (apropriação do trabalho excedente por uma classe parasitária no quadro socioeconômico. No quesito movimentação política, essa ordem trata a ação revolucionária em termos de tática e estratégia. Se a ordem necessária reflete uma condição de miserabilidade social que não pode continuar a mesma, é lógico que a política é vista como uma guerra continuada por outros meios. Sendo assim, táticas de guerra como um partido clandestino e militarizado são peças essenciais para fazer funcionar outra engrenagem.

A revolução seria como uma peste que se alastraria por toda a Europa, inclusive detidamente sobre a Alemanha. A revolução se daria por um paradigma preciso: a conquista do poder estatal como epicentro da mudança radical[3]. O capitalismo é marcado como um sistema que produz miséria e opressão. Eis as duas palavras-chave da emancipação: se conseguirmos acabar com a miséria e com a opressão estaremos caminhando a passos largos rumo a uma sociedade livre. Num mundo necessário essa formulação prática-revolucionária estava como um peixe n’água. De 1905 a 1919, a idéia de uma revolução pelo poder estava bastante em voga. No entanto, há um movimento que começa no esmagamento do grupo spartakista[4] na Alemanha que o Maio de 1968 fará questão de pontuar: a passada da necessidade da revolução ao desejo da ordem estabelecida.

V. A ordem desejante: poder, corpo e subjetividade

O que parecia realizável em 1917 – a revolução estrutural de uma sociedade miserável – em 1933 era um doce sonho e em 1940 um pesadelo distante. Os campos de concentração nazistas e os gulags stalinistas cumpriam uma mesma função: modernização retardatária[5], trabalho forçado em prol do crescimento/progresso nacional. Do lado do stalinismo, a materialização de um socialismo, sua realidade histórica presente no maior país do mundo, fazia com que o pensamento revolucionário tirasse um elemento da reflexão: a opressão. Passou-se a entendê-la não como uma característica essencial do capitalismo. A opressão era um fenômeno de superfície de pontos mais estruturais do sistema capitalista. Pontos que perdurariam solidamente após a derrocada do capitalismo. Ou seja, derrubar o capitalismo não era entendido como uma tomada de poder nem como a execução de uma revolução tal qual em 1917.

Há uma mudança sutil e significativa aqui. A questão não é dizer que movimentos revolucionários de massa são descartáveis num processo revolucionário, mas questionar a própria revolução em seu ato revolucionário. É preciso afirmar que não se tinha, à época, a clareza que temos hoje da degeneração stalinista. A questão era: por que a revolução não aconteceu? Quais elementos obstaculizaram a atividade revolucionária? Quais os mecanismos que realizaram essa tarefa inédita?

Por sua herança hegeliana, o marxismo sempre apostou na razão e na consciência. Ou seja, a conscientização como peça fundamental de uma revolta. Ou mesmo a racionalização da produção como elemento revolucionário para uma nova ordem. Até 1933, a crença na razão não havia jamais sido abalada. Muito pelo contrário, o debate se dava em como produzir consciência de classe[6]: se através de um partido que a traria de fora, a matriz leninista, ou através de movimentações prático-cotidianas, a matriz luxemburguista. O problema colocado é que duas ordens totalitárias acabavam de subjugar definitivamente as forças da revolução. Há pelo menos três tendências que passam a pensar o não da revolução.

Em primeiro lugar, o freudo-marxismo[7]. A junção entre Freud e Marx é, grosso modo, a união entre libertação individual e coletiva. O quadro conceitual de Freud permite pensar uma ordem libidinal desejante que subjuga o corpo a certa situação. Freud realiza uma constituição psíquica-antropológica do homem. Em outras palavras, Freud tenta mostrar a ossatura e a arquitetura do homem, como ele funciona individualmente. Através de Freud, os marxistas puderam entender que a dominação se dava também no solo psíquico-individual. Além do trabalho e da opressão, da miséria e da exploração, havia a libido.

Em segundo lugar, o marxismo-ocidental[8]. Esse marxismo peculiar se esforçou para pensar as relações fetichistas do capitalismo. Colocando o valor no centro do debate, em vez da mais-valia, esse marxismo entendia que o capitalismo deve ser condenado não apenas pela miséria mas principalmente pela inversão entre coisas e pessoas, pela fetichização das relações sociais.

Em terceiro lugar, o nietzscheo-marxismo ou marxismo-nietzschiano[9]. Aqui a questão passa a ser um diálogo entre Nietzsche e Marx, que só viria a ocorrer na década de 60. Antes disso, Nietzsche foi rechaçado. Apenas marginalmente, aqui e ali, ousavam arrancar Nietzsche do túmulo proto-fascista cujas correntes marxistas ortodoxas tinham-no enfiado a sete palmos do chão. A questão aqui passava a ser o poder. Como se pensa o poder? Qual sua amplitude? Como ele funciona?

O resumo é demais, pede uma explanação mais detalhada. E se falar em “fetichização” é já parecer demasiado complicado, parece-me um retrato fiel de como a movimentação revolucionária ainda está no paradigma do Estado e vê as mudanças de forma simples. Para não me reter a explicar essas três tendências isoladamente, digo então que elas levantaram três problemáticas novas: o corpo, o poder e a subjetividade. Em 1968, essas problemáticas explodiram e ganharam o terreno político de ação.

Da parte do corpo, passou-se a entendê-lo não como uma propriedade, onde uns têm e outros não. O poder, então, é algo mais que funciona. Não se pode dizer que o poder, ao trocar de mãos, desaparecerá. Ele mudará de configuração. É por isso que o poder não está num lugar específico, no Estado. Tomar o poder através do Estado é começar pelo fim. Há redes para além do Estado que mantém a dominação capitalista. É assim que o poder sai de uma questão de tática e estratégia e entra numa questão de subjetividade. Quando Guy Debord fala de espetáculo, podemos entender como uma luta subjetiva que dominação.

O nazifascismo e o stalinismo colocaram para o pensamento de esquerda a constatação de que a revolução não é necessária, ela é desejante. Há mecanismos de poder que podem fazer rodar para trás a História. Na década de 60 em diante, a nossa sociedade recebeu vários nomes: sociedade do espetáculo (Debord), sociedade de consumo (Baudrillard), sociedade do trabalho (Gorz), sociedade da opulência (Marcuse), sociedade totalmente administrada (Adorno) etc. Todas essas sociedades tinham como objetivo manter uma dominação capitalista não mais através da exploração ou da miséria, mas através de uma produção de subjetividade passiva.

Em vez de miséria, revolução e mais-valia, o Maio de 1968 colocou em questão o corpo, o poder e a subjetividade. Se no período dos totalitarismos a pergunta ainda era por que a revolução não havia ocorrido, em 1968 se propôs entender esses mecanismos e tentar quebrá-los. Em 1968 há uma crítica radical do sistema capitalista. Radical porque vai até a raiz do sistema: o fetichismo da mercadoria. A separação do fazer. O fetichismo da mercadoria reflete um processo social onde os homens são submetidos a sua própria atividade, o trabalho. É por isso que para a crítica radical a ontologia do trabalho é fruto da fetichização. O trabalho não é condição ontológica do homem, mas condição histórica.

Tentando ser mais claro, o fetichismo da mercadoria provoca uma objetificação do sujeito e uma subjetivização do objeto. Ou há uma personificação das coisas e uma coisificação das pessoas. Dando um exemplo prático: as coisas (dinheiro e capital) são convertidas em sujeitos da sociedade e as pessoas (trabalhadores) são convertidos em objetos. Em vez de o trabalho servir ao homem, é o homem que serve ao trabalho. É esse movimento fetichista que é posto em questão em 1968. Depois dele, o fetichismo passa a ser um dos problemas centrais que enfrenta qualquer revolução, pois pensar e fazer revolução é necessariamente um ato antifetichista.

Dando um passo atrás, a subjetividade entra no campo de combate político desde quando Adorno e Horkheimer falam em indústria cultural, em mistificação das massas. Pode-se dizer que, a partir deles, começa uma reflexão política que não dá mais o estatuto de necessidade ao objetivo. Ou seja, nem sempre uma condição objetiva de miséria e pobreza leva à revolução. Essa objetividade pode ser subjetivamente controlada, através do controle do desejo. Em um regime totalitário há além das mortes e das torturas uma construção subjetiva de controle político da mente.

VI. Conclusão: empecilhos, rótulos, lutas, trincheiras... do que é reativo e do que é ativo.

Retomando tudo o que eu disse. Minha tese é a de que o Maio de 1968 representa o marco numa reflexão e ação política emancipatória. Com isso, quis dizer que o Maio de 1968 sai do plano das necessidades e das inevitabilidades e entra no solo do desejo, ou seja, mecanismos de poder que obstaculizam a transformação da sociedade. Essa abertura provocada pelo Maio é rica demais. Poderíamos enveredar pelo problema do gênero, do prazer. Podemos entra nas salas gigantes da mídia ou nos labirintos da crítica da própria crítica da sociedade. Colocando o desejo, em vez da necessidade, em primeiro lugar, o Maio de 1968 nos deixa uma grande questão: que tipo de organização é capaz de quebrar a alienação moderna? O Maio de 1968 é uma fenda aberta para sempre na História e uma ferida que jamais cicatrizará na ortodoxia marxista.

Talvez tenha sido Che Guevara que tenha dito que ninguém precisava se dizer marxista, na década de 1960, uma vez que as problemáticas do mundo daquela época eram as problemáticas capitalistas. Sendo ousado, direi que hoje ninguém mais precisa se intitular pós-moderno, porque as problemáticas atuais são as problemáticas pós-modernas, isto é, do poder, do corpo e da subjetividade. Noves fora o fato de haver vários tipos de “pós-modernidade”, com essa frase quero sair de um terreno que julgo ser reativo. Por isso que em nenhum momento me coloquei a questão de se o Maio de 1968 foi uma revolta ou revolução, se ele conseguiu edificar algo, quais são suas perdas e ganhos. Minha preocupação é colocar o que o Maio de 1968 abriu como campo de combate político. Atualmente, é preciso entender essa abertura para qualquer atividade que se diga revolucionária.

Rótulos como o de “pós-moderno” apenas freiam o debate. É extremamente reativo buscar alguma verdade por trás do Maio de 1968. A meu ver, constitui-se como atividade afirmar o devir-1968, a saber, “não trabalhe jamais!”, “seja realista, exija o impossível!”, “a política está nas ruas!”, “as estruturas não andam aqui!” etc.

VII. Bibliografia recomendada

Há uma série de livros importantes para se compreender o maio de 1968 e a fenda por ele aberta. Cito os que considero mais importantes, embora no texto tenha citado além desses e usado também outros para a escrita:

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. 2. reim. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda, 1997
Loureiro, Isabel Maria. Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária. São Paulo: UNESP, 2004.
LUKÁCS, Georg. . História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2003.
MARX, Karl, 1818 - 1883. O capital: crítica da economia política. 3 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. 4 v. (Os economistas)
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de o capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.
RUBIN, Isaak Illich. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980.


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[1] Marco. Não nascimento. Não coroamento. Isto é, o Maio de 1968 não é nem o nascimento de uma política surgida a partir do nada, não é o início de um ciclo. Tampouco é o fechamento consolidativo de uma política contra-hegemônica que encontraria a partir da data uma inserção maior. Um marco é aquilo que assinala os limites de um território. O Maio de 1968 é um marco porque inseriu nos limites do território político novas problemáticas que serão posteriormente analisadas.
[2] Conferir os autores Robert Kurz e o Anselm Jappe.
[3] John Holloway, em seu Mudar o mundo sem tomar o poder, realiza uma excelente análise do paradigma do Estado.
[4] A Liga Spartakus era um grupo que tinha como membro a militante Rosa Luxemburgo e mais outros nomes fenomenais embora não tanto conhecidos quanto ela. Esse grupo defendia a tese de que a guerra mundial colocava a humanidade na seguinte alternativa: ou manutenção do capitalismo, novas guerras e rápida queda no caos, ou abolição da exploração capitalista. Ou seja, ou revolução ou barbárie. Melhor dizendo: socialismo ou barbárie. Rosa Luxemburgo representa um ponto de junção entre a necessidade e o desejo, ela tanto entende o colapso do sistema capitalista como a necessidade de uma movimentação prático-revolucionária. É como se Rosa Luxemburgo estivesse entre o determinismo e o voluntarismo. Os dilemas da ação revolucionária, em Rosa, são os dilemas da necessidade e do desejo. Daí porque ela ocupa, em minha reflexão, um lugar ímpar. A Liga foi o marco de uma movimentação abafada por uma ordem que viria a se consolidar em 1933 na Alemanha, a saber, o nazismo.
[5] Robert Kurz, no Colapso da Modernização, detidamente neste ponto mostra como o movimento proletário serviu intrinsecamente à aceleração capitalista nos países periféricos.
[6] Em 1923 aparece o primeiro grande livro a problematizar a relação entre revolução e consciência de uma forma inédita. George Lukács, com o seu História e Consciência de Classe, sai do terreno da necessidade revolucionária e parte para o desejo, segundo ele o problema central é o fetichismo da mercadoria e não a opressão/miséria provocada pelo capital.
[7] Entram, aqui, nomes como Reich, Marcuse, Adorno, Horkheimer etc.
[8] Entram, aqui, três nomes fundamentais: Lukács, Rosdoslky e Rubin.
[9] Entram, aqui, nomes como Michel Foucault,Gilles Deleuze e Félix Guattari.