Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Thursday, December 18, 2008

O Capitalismo de Desastre de Naomi Klein, ou seria o nosso?



Contrariando as regras de domesticação da escrita ou o manual de asseptização do pensamento, mais conhecido como “Regras da ABNT”[1], começo esse texto pela crítica. Ou seja, em vez de uma introdução, parágrafos logicamente construídos, apresentação da obra etc., misturo as ordens.

Para um leitor de Marx, o que é o meu caso, o capitalismo não significa somente um sistema historicamente determinado que consiste na exploração do homem pelo homem. Também não significa apenas, outrossim, a desvalorização dos valores cujos únicos pórticos pseudo-transcendentais são o dinheiro e o trabalho. Da mesma forma, falar em capitalismo não é falar de uma vontade subjacente abstrata e imanente ao gênero humano. Por fim, depois de Marx o capital não é controlado e, o mais importante, não é controlável. Após Marx, é tão ridículo conceber um capitalismo regulado como o é entender que o mercado pode se auto-regular através de leis igualmente infame como a da oferta e procura.

O que embolou o meio campo é que entre Marx e nós há uma crise mundial (1929, bloco ocidental-capitalista), uma revolução traída (1917-1950, período de modernização absurdamente autoritária da União Soviética), uma revolução silenciada (1919, Alemanha, morte sumária de Rosa Luxemburgo e seu grupo). A lista é longa. No entanto, a pedra no sapato se chama John Maynard Keynes. É ele quem implementou e teorizou uma política econômica vitoriosa nos períodos de recessão, o chamado Estado de Bem-Estar Social ou [i]Warfare State[/i], como diria Marcuse. Keynes admite que há esferas públicas das quais o Estado deve prestar contas, enquanto outros setores da economia devem ser regulados pela mão invisível do mercado. Evidentemente que sua teoria econômica é muito mais profícua, aqui se trata de um recorte resumido.

O que estou querendo dizer é que a via de Keynes – nem capitalista nem socialista ou, em certa medida, capitalista no mercado, socialista nas necessidades básicas como escola, hospital etc. – é hoje dominante, embora seu apogeu tenha se dado com Roosevelt e o New Deal, programa para tirar os E.U.A da crise jamais vista. Trocando em miúdos, a idéia de que não é o capitalismo que é o problema, mas uma certa apropriação desse sistema. A questão não é o poder, mas quem está no poder. É como se tanto o capitalismo selvagem quanto o socialismo real fossem duas faces de um mesmo totalitarismo a ser execrado. Assim, Keynes não acreditava nem na estatização marxista nem no laissez-feire neoliberal. Se há algum lugar de onde Naomi Klein fala, é deste[2]. Ou seja, ela não critica o capitalismo, mas sim o capitalismo de desastre. Antes mesmo de esse ser um dispositivo conceitual que lhe permite enxergar e analisar o mundo atual, é também um nome que delimita seu campo de ação ideológico.

Antes de especificar ainda mais a crítica, para posteriormente passar aos pontos extremamente positivos da obra, convém estabelecer o que julgo ser o capitalismo, a saber, um sistema social cujo paradigma fundamental é o fetichismo da mercadorias, a reificação. Através da produção de mercadorias, célula elementar da produção capitalista, o capitalismo se consolida não somente na esfera política ou só na econômica, mas também na esfera da produção de subjetividade. O capitalismo não é criticável pelos seus exageros, como parece entender Naomi Klein, mas pela sua dinâmica imanente de produção e destruição, de miséria e opulência, de dissociação. O capitalismo não existe numa convivência pacífica com modos de deliberação democráticos, com organizações descentralizadas e decisões horizontais. Ou seja, aquilo que a Naomi Klein entende como exagero é, na verdade, a sombra constante do sistema produtor de mercadorias. A questão não está, portanto, como parece crer Klein, no fundamentalismo das idéias[3], mas no processo produtivo e distributivo da sociedade. Não só a nível econômico, mas também a nível político, entendido como esfera social de decisão coletiva e de debate democrático.

Como um latino-americano, calejado da tentativa socialista democrática do Chile, cuja imagem do palácio do governo, de La Moneda, em 1973, em chamas com seu presidente lá dentro vociferando contra o totalitarismo do capital[4] constitui um retrato fiel da tolerância capitalista, e também visto a recém tentativa de golpe no Governo de Hugo Chávez na Venezuela já não é factível crer num capitalismo aliado com democracia e com distribuição de renda. Ou seja, o nosso 11 de Setembro se deu em 1973 e não em 2001, com a queda da última tentativa socialista democrática de nosso continente.

A grande crítica a ser feita ao excelente livro de Naomi Klein é essa: a crítica não se volta ao sujeito automático do capital, como dizia Marx, mas aos exageros quase perversos de um grupo de corporações que não tem coração nem bom senso. Klein chega a ser risível, neste sentido:

“Se nos seis meses que se seguiram à invasão aos iraquianos se vissem bebendo água limpa dos canos da Bechtel, suas casas iluminadas pelas lâmpadas da GE, seus enfermos tratados nos hospitais higiênicos construídos pela Parsons, suas ruas patrulhadas pela polícia competente treinada da DyrnCorp, muitos cidadãos (embora nem todos) teriam, provavelmente, superado sua raiva por terem sido excluídos do processo de reconstrução”[5].

Neste parágrafo Klein está mencionando a reconstrução do Iraque. Que doce ingenuidade dela! Possível para quem não sentiu os duros golpes do totalitarismo terceiro-mundista. Há tantos outros trechos em que fica devidamente claro que Klein não se questiona, de modo algum, sobre a dinâmica inerente do capital, da sua incontrolabilidade social e de sua destruição produtiva. Exceto em lampejos fugazes, Klein jamais se questiona, ao longo das mais de 560 páginas de seu livro, sobre o liberalismo. O problema para ela constitui somente o neoliberalismo.

Essa mudança de campo de combate, apesar dos defeitos que tentei mostrar, também faz surgir algo curioso. Em seu livro, Klein realiza uma crítica de dentro do capitalismo. Suas fontes, New York Times, CNN, foram-me estranhas, no início. Contudo ela consegue, com astúcia invejável, retirar de dentro dos meios capitalistas críticas consistentes e duras.

Há pelo menos três coisas a salientar nessa grande obra, além da crítica já feita. A primeira é como Klein entende o neoliberalismo, a segunda como ela utiliza a tortura como metáfora e a terceira a introdução de um termo pouco analisado, a saber, as catástrofes ecológicas. Vamos lá.

No primeiro ponto, Klein entende que há uma tríade ideológica do neoliberalismo que consiste em um ataque à esfera pública em busca de sua eliminação, total liberdade para as corporações com anuência total do Estado e um gasto social mínimo com necessidades básicas da população. É aqui que ela crava o seu conceito[6]. O grande mérito de Klein é entender que o neoliberalismo, que teve seu apogeu no golpe de Pinochet no Chile, começou uma tendência geral social que desencadearia um sistema político econômico extremamente negativo atualmente. A retirada do Estado para que as empresas privadas tomassem conta e lucrassem com serviços essenciais (como água, energia, telefone, escola etc.) se observa, atualmente, na reconstrução de grandes metrópoles devastadas por catástrofes. Ela cita bem o exemplo de Nova Orleans que, após o desastre, teve suas escolas públicas drasticamente diminuídas e, em cima dos escombros, o que se viu não foi uma reconstrução, mas uma oportunidade mercadológica de implementar políticas neoliberais. Em uma de suas passagens ingênuas, Klein diz que todos nós, apesar de vermos cotidianamente a exclusão de outras pessoas do cuidado com a saúde, por exemplo, acreditamos que num desastre tudo muda e surge uma humanidade cujo substrato é a ajuda ao próximo. Presenciando o Katrina e o tsunami, Klein deixa essa idéia de lado e entende que a adminstração do desastre é apenas a intensificação das políticas neoliberais.

No segundo ponto, Klein traça uma linha que vai da tortura individual em voga nas ditaduras militares do século passado às invasões do Iraque pelos Estados Unidos em 2005. Na esteira das pesquisas de um psiquiatra chamado Ewen Cameron e dos manuais da CIA de tortura, Klein entende que a tarefa dos Estados Unidos, iniciada em 1973 no Chile, e tendo como atual ápice o Iraque, era a de tortura um coletivo. Para Cameron, a tortura deveria limpar a mente do sujeito, fazê-la ficar vazia para que se colocassem elementos novos, criasse uma mente-modelo. Através de privações de sentido, torturas direcionadas ao corpo e buscas para destruir a personalidade, Cameron tinha como objetivo destruir completamente a personalidade para construir uma outra. É assim que, para ela, o Iraque seguiu a cartilha da tortura: primeiro perdeu os ouvidos pelas explosões cotidianas, depois foi dopado (a maioria das farmácias de Bagdá vendiam todo os seus estoques de remédios para dormir e antidepressivos), ao mesmo tempo em que sua identidade era destruída (vários museus iraquianos, na verdade museus humanos, pois muita coisa que ali existia fazia parte da história de todos nós, foram sumariamente saqueados ou destruídos). O que estava em jogo no Iraque era destruir a infra-estrutura, aterrorizar o país inteiro. Provocar medo e pavor. Com o objetivo de construir uma cidade-modelo.

No terceiro ponto, Klein com muita habilidade mostra que os recentes desastres ecológicos foram vistos, não só pelos governos mas também pelas empresas corporativas, como oportunidades de lucrar cada vez mais. O que Klein chama de “apartheid do desastre” é efetivamente isso: em vez de uma reconstrução social, um espaço de mais-lucro. Ela dá como exemplo os praias subjugadas pelas águas do tsunami que levaram junto consigo muitos pescadores e familiares. Depois do desastre, muitos deles não puderam retornar ao local de origem, pois este já tinha sido devidamente militarizado para construção de resorts e hotéis de luxo. Era a construção de um turismo implacável entrando no lugar de comunidade de pescadores e necessidades sociais vitais.

Por fim, o livro de Klein é extremamente denso, repleto de elucubrações jornalísticas de dados essenciais. Sua força é, ao mesmo tempo, sua fraqueza. Ou seja, na medida em que é uma crítica ferrenha ao neoliberalismo é também um resgate esperançoso num sistema capitalista mais humano e democrático. Fechando, assim, uma discussão que hoje é ainda mais essencial: o capitalismo é ainda viável? Klein responde categoricamente que o capitalismo de desastre não. Ainda assim, este é um livro de leitura obrigatória para quem quer que queira entender qual é a dinâmica geopolítica e socioeconômica do mundo atual.
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[1] Melhor seria falar em “Regras de Conduta” ou “Passos para uma elegantização inócua do pensamento”. Qualquer termo criado espontaneamente serve para ilustrar essa padronização da crítica.
[2] “Eu não estou argumentando que todas as formas de sistema de mercado são inerentemente violentas. É possível a existência de uma economia de mercado que não exija tamanha brutalidade nem imponha esse tipo de purismo ideológico. Um mercado livre para produtos de consumo pode coexistir com um sistema público de saúde, com escolas públicas, e com um amplo segmento da economia controlada pelo Estado – como uma empresa petrolífera nacionalizada, por exemplo. É ainda factível exigir das corporações que paguem salários decentes e respeitem os direitos dos trabalhadores de formar sindicatos, e dos governos que cobrem seus impostos e redistribuam a riqueza a fim de reduzir as desigualdades que caracterizam o Estado corporativo. Os mercados não precisam ser fundamentalistas”. (Grifo meu). KLEIN, N. A doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. P. 30
[3] Em vários momentos se percebe que a crítica de Naomi Klein é a um capitalismo fundamentalista e não ao capitalismo.
[4] “A batalha do Chile não terminou. Eles têm a força. Poderão nos avassalar. Porém não se detêm os progressos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos. Sigam sabendo vocês que muito mais cedo do que tarde de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passe o homem livre para construir uma sociedade melhor”. (Salvador Allende 11/09/1973), discurso de dentro do palácio em chamas.
[5] P. 421.
[6] “Eu chamo esses ataques orquestrados à esfera pública, ocorridos no auge de acontecimentos catastróficos, e combinados ao fato de que os desastres são tratados como estimulantes oportunidades de mercado, de ‘capitalismo de desastre’”. P. 15

2 comments:

Fabiano said...

hehehe vai escrever assim la na pqp... rsrs

Filho... uma suigestão... penso que vc deveria adotar o Cuidado... antes dos silêncios soltos, acho que tem td haver com esse epaço, rsrs

Muito bom o texto, embora eu tenha algumas divergências com alguns fatos... chego na terrinha la pelo dia 23(está perto), queria conversar com vc..
Há braços!

Unknown said...

não conhecia a proeza n° 2 do seu boneco. Muito bom camarada, acho até melhor vc deixar a vida de jogador pra ficar escrevendo nessa net....
abraço