Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Saturday, August 11, 2007

Diomedes: o entrelaçamento entre poesia e prática.


Em Mário Jorge [MJ] podemos indubitavelmente falar em um tipo de experiência estética, numa dinâmica da criação poética e numa ligação particular com o real. Resguarda-se a autonomia relativa entre a construção poética e a atividade real. A poesia mesmo sem se submeter a nenhuma tarefa explícita continua sendo autêntica, ato político. A arte como a liberdade, como explosão, como um murro no tempo, eis Mário Jorge. No entanto, há também o fator militante em sua poesia e é justamente aqui que ele se toca com Diomedes Santos Silva (1955-1993): o poeta militante.

Mário Jorge viveu o horror da pressão ditatorial. Sua estética por vezes esbarra na situação objetiva. Em alguns momentos chegou a abandonar completamente a estética, afirmando que é da fome e da dor que nasce a revolta. Ou seja, não se nasce luta das frases, dos poemas, nem do que ele chamou de choramingos aristotélicos lineares da adolescência mental sergipana. Politicamente a poesia de Mário Jorge é um brado silenciado pelo aparato coercitivo físico e psíquico da ditadura. Por exemplo:

Que tortura maior pode existir

Do que não se pode falar?

De ver tantos homens a dormir,

E não poder a eles acordar?


Que o choro das crianças famintas.

Que os gritos de dor do homem agonizante

Que as chagas purulentas dos meninos doentes,

Que o desespero da mãe de um filho morto,

Morto de fome, de sede e de frio.

Acorde os que dormem

O sono inocente e casto da ignorância,

O sono terrível da alienação

E que mate os que sabem e vêem

Porém nada fazem...

Este é o começo e o fim de Brados. Uma de várias poesias completamente voltadas para o compromisso da revolução radical de MJ. Diomedes é contemporâneo de Mário Jorge (1946-1973), contudo viveu a derrocada do socialismo real e da ditadura militar brasileira. Tais eventos históricos aparecem em sua anti-estética. Deixemos momentaneamente MJ com Diomedes num verso:

Todos estão adormecidos

Ou se fazem de desavisados

E deixam meu grito se perder!

Eu grito, eu chamo, eu aviso!

Acordem!

Que ainda é tempo de lutar

E a verdade não mente

Como as estatísticas!

Se a tarefa de MJ era transformar com o gesto e explodir com o grito, a de Diomedes era a de englobar em um só golpe o machado e a pena. Já não há diferença, é hora de centrar forças no único objetivo da revolução. Diomedes não cansa de despojar toda a sua esperança no funcionar a máquina/produzir a máquina/o mais importante elemento/econômico do processo, ou seja, o proletariado. Para Diomedes, a historiografia tradicional esqueceu que a História não é ditada em gabinetes, ela é fato, é ato de cada dia. É preciso quebrar essa linha dura: a alienação capitalista que chegou a um momento de solidez forte. É uma anti-estética porque não há mais estética, não há mais um e outro. Entre o tudo/e o nada/existe uma razão. Essa razão é a ruptura abrupta real. Já não se procura mais a saída na reflexão. Diomedes se aproxima do Marxismo da Ideologia Alemã, para o qual a oposição de fraseologias não combate de forma alguma o mundo real existente e das Teses Sobre Feuerbach, para a qual não se pode mais interpretar o mundo, mas sim transformá-lo.

Impelido pela práxis marxista, ali onde o homem deve mostrar a verdade e a força de seu pensamento, Diomedes leva a poesia ao seu extremo. Sua poesia não é um murro no tempo, é um salto para fora de si mesma. A arma desse salto, sua mola propulsora, é a esperança do fundo do poço/forçando portas, paredes e caminhos/invadindo homens, barricadas e o tempo/mesmo com toda a opressão/a libertação fecunda/DERRUBEMOS O REI!. A situação de uma periferia capitalista, cuja dinâmica é girar em falso ou de ter as idéias fora do lugar, experimentando a possibilidade de um horizonte melhor com a dissolução da ditadura militar contrastava com a posição mundial de derrocada do socialismo realmente existente. Diomedes experimentou, com o PT em ascensão, a possibilidade de transformação. Seu fio condutor, em sua construção anti-estética, é justamente a certeza da vitória. Na periferia periférica capitalista, Diomedes bradou, gritou e acreditou que outros fariam o mesmo que ele.

Os métodos de Mário Jorge e Diomedes não são fracassados, embora não tenham dado certo. Ainda que possamos perceber ainda hoje os frutos de um e de outro, sobretudo na formação de uma categoria combatente na conjuntura sergipana, há uma lacuna de lá para cá. Este espaço vazio de militância foi provocado pelo avanço do componente integral e fundamental do capitalismo: o fetichismo da mercadoria. O capital domesticou a própria relação que existia entre homem e arte, ao passo que domesticava a relação homem x homem e homem x trabalho. Os métodos dos dois poetas sergipanos, acima de tudo militantes engajados na possibilidade de uma nova sociedade, não são fracassados porque plantaram a semente de uma revolução: a idéia de que se devem arrebentar as amarras. É essa força que poderá tornar capaz algum tipo de fissura profunda no capitalismo. É como se Mário Jorge e Diomedes quisessem dizer que há um ponto em que, quando se chega, já não se pode mais voltar; é neste ponto que a atividade revolucionária deve almejar conquistar.

Thursday, August 09, 2007

O Vôomito: excurso sobre Mário Jorge.

Correndo risco de ser autoritário, tomo por tal figura a essência da experiência da poesia de Mário Jorge Vieira (1946-1973). Nela estão contidos seus principais elementos: a ação do marginauta e a subida sem vacilo no desconhecido mundo da imaginação. Esse tipo de dinâmica cujo elemento central é a possibilidade de silêncios que dormem em palavras sedentas de ouvidos é própria ao universo poético de Mário Jorge onde a possibilidade da impossibilidade é pensada não por um fechar de olhos que engendra um mundo metafísico e desligado do real, mas um mundo de extrilhaços; ou seja, de um mundo despedaçado pela tecnologia onde é esta própria técnica que estilhaça o mundo que lhe mostra possibilidade de entrar nos trilhos ou de procurar trilhos para rumar para um novo horizonte. Mais, ainda, esse desenho traz também a experimentação da revolição.

Com este termo, revolição, Mário Jorge parecia pensar diversas coisas. Por exemplo, uma experiência estética própria que consistia, a saber, num ato inicial de toda manifestação voluntária. Algo como um auto-mergulho no ser e no mundo. Trata-se da ação de imergir no fundo do homem e das coisas: é a arte-vida, arte-vômito: deglutir o real como totalidade. Revolição passa a ser um movimento próprio reflexivo da construção literária e poética. É um ir e voltar. Por isso um vôo, porque se situa sempre entre. A poesia de Mário Jorge era o engolir e vomitar o real. Porém não apenas isso. Há um meio-termo aí: é a degustação ou a digestão própria ao interior de cada organismo. Engolir e vomitar não é reprodução do mesmo, mas do diferente, do particular. A poesia de Mário Jorge é uma desdobração. Não é desdobramento porque não é só a ação de revirar o mundo de uma outra forma. É desdobração porque é a ação de desdobrar, de redobrar, de retorcer, de chacoalhar, de quebrar e de destruir; todos estes elementos no liquidificador da criação. Essa desdobração não é frente a um mundo dobrado, cuja ação de desdobrar trouxesse sua lógica. É a entorse distorce do mundo.

Há um trecho de Mário Jorge que também sintetiza, a meu ver, boa parte de sua intenção:

O marginauta imagina-se

Em remotas plagas onde o vento

Não habita seu ninho de nuvens


O marginauta fez-se só

E a solidão ácida dos dedos

Cruzando-se em mãos alheias

Ao chiqueiro do corpo


O marginauta maluco margina

Andante duro de mágicas

Cansado de sons trágicos

Toma a nave e decola

Há três momentos essenciais presentes aqui que são igualmente importantes para Mário Jorge. Primeiro a ação primeira do poeta: o vôo para remotas regiões. É essa ação de liquidação do estoque das palavras e o jogar-se sem medo no barco da imaginação que constitui o ato do marginauta. O segundo momento é o fazer-se só em escrita, em arte. Já é aí a concreção artística possível de ser transmitida. No entanto, MJ esbarra-se na sua situação objetiva, ou mais precisamente no ambiente de Aracaju e Sergipe. O que ele chamou de angústia congênita do artista nordestino: a saber, a inexistência de leitores para seus escritos em concomitância à existência da realidade desumana e cruel da exploração do homem no nordeste. MJ pensava numa arte que pudesse disputar com os meios de comunicação de massa, a Indústria Cultural, a primazia no cotidiano do homem. Ele mesmo confessou ser um sacrifício imenso para sua mão obedecer a sua cuca a escrever coisas desta espécie. O terceiro momento é o da arte confrontada com o constante avanço tecnológico. A problemática da necessidade da contemporanização da arte defronte ao silêncio das palavras que não se fazem ouvir ainda que sejam ditas. Num mundo onde as sirenes policiais cantavam terrível sinfonia que mais pareciam o prelúdio de um presente perpétuo sempre futuro. Como se a constante mudança a tudo mudasse menos a si mesma. Perecia também a arte que poderia apodrecer isolada da explosão que estava ocorrendo no mundo. Era preciso também que a arte acompanhasse essa mudança de um modo a se fazer ouvir autonomamente. O constante avanço das forças produtivas acabou por alienar quase que absolutamente o homem, fê-lo impotente face à dinâmica veloz que o esmaga, dilacera e desafia. É necessário, portanto, que a arte resguarde o momento de protesto, para tanto, que se nade contra a corrente e que se coma as ondas. Tomar a nave e decolar fecha o ciclo interminável do vôomito.

A obra de Mário Jorge, a meu ver, é a travessia do vôomito. Começa com um vôo para este mundo visto por uma outra perspectiva, continua com uma tentativa de materializar tal visão e termina com uma ação mais forte do que começou: criar incessantemente. MJ apostava todas as fichas na certeza de que a poesia não perderia para Indústria Cultural. Justamente porque em sua opinião ela trazia algo impossível a mass-media: o germe do novo sempre diferente. A arte não pode aliar-se a nada, deve permanecer autêntica em si, só assim poderá ser política, revolucionária. É uma atividade puramente livre, desprendida de qualquer grilhão. Mas nem por isso descompromissada com o real, pois sua tarefa é transformá-lo.

Mário Jorge se faz ouvir no silêncio, sobretudo na mudez dos jovens de Aracaju. Onde ali existe silêncio, conformismo, padrão e indiferença, podemos ter a certeza de que ali não existe Mário Jorge. Sua obra luta em duas frentes: transforma com o gesto e explode com o grito. Isto significa afirmar que é a ação revolucionária unida com um novo tipo de vínculo estético que pode criar um mundo distinto. Como ele mesmo dizia: não mais a conversa fiada. A palavra afiada.

Monday, August 06, 2007

Joseph K.

Há quem coloque lado a lado K. e Joseph K. De certo modo, há uma relação de continuidade. Ou melhor, uma relação de semelhança. Joseph K. também sobrevive num mundo desesperado, dado por entrega ao absurdo, à injustiça despótica e à falsidade. Em uma palavra: um mundo sem liberdade. A crítica da reificação burocrática e da organização hierarquizada que controla tudo e a todos se fazem sentir tanto em um quanto em outro.

Em certa manhã Joseph K. acorda detido. Para dificultar sua compreensão da situação em que se encontra, o fato de ele está detido não o impede de que ele cumpra suas obrigações. Este estado permanente de vigília não é só próprio à literatura de Kafka, mas também ao próprio mundo tal qual se conhece atualmente. Há infinitas possíveis interpretações de ambos os anti-heróis. No entanto, por mais variadas que sejam, terão de se fundar por aquilo que de fato acomete o sujeito kafkiano: a constante presença de um representante de uma ordem do mundo fundada sobre a mentira. Lugar em que a mentira não é suprimida nem pelo seu contrário, toda tentativa isolada de opor a verdade à mentira está condenada ao fracasso. A única saída, se há saída, é a abolição deste mundo por um diferente. Trata-se de um certo tipo de redenção peculiar submergida no universo sufocante do arbítrio burocrático.

Aquele que Joseph K. olha atentamente enquanto seu coração era atravessado por uma faca não era um amigo, nem uma criatura bondosa, como conjeturou Joseph. Aquele, cuja inércia provocou a última dúvida de Joseph K., era o homem incapaz de levantar-se contra uma injustiça em sua frente, um homem incapaz de reconhecer-se no outro, a quem já não é possibilitado a possibilidade da transformação. Se há esperança, não era para Joseph K.

A respeito de K.


Afinal de contas, quem é K.? Difícil responder tal pergunta. K., para não ser ninguém, é preciso que seja todos. A situação de K. é daquele sujeito que já se perdeu, que se encontra fora de si e fora do mundo. É possível encontrar em K. a experiência do sujeito moderno, alienado de si mesmo, no entanto, tal alienação em K. tem caráter de uma realidade própria de sua não-vida. K. experiencia o Fora. Não no sentido de vivenciar um mundo além do nosso, mas vive precisamente neste, mas desdobrado em uma outra versão.

K. é o protótipo de uma época histórica onde a os homens se debatem com um poder anônimo e que desfila em qualquer lugar. Penetra nas inter-relações humanas – na figura de Frieda e Amália, ambas com decisões distintas todavia provocadas e influenciadas diretamente pelo poder d’O Castelo. No íntimo de K. – em seus ciúmes doentios e sua frustração por essas duas figuras. Adentra ferozmente equânime na impossibilidade de se compreender as autoridades, não porque não há o que compreender; mas porque não há como compreender a ofensiva ininterrupta e inexorável do poder nas pessoas.

K. mostra o abuso de poder na existência própria do poder. Não como algo que lhe é estranho, mas constituinte, fundamento. K. ainda se faz ouvir porque a espera ainda existe. A K. não foi só impossibilitado uma permanência tranqüila na aldeia, mas também a formação de uma família, a manutenção de si num lugar fixo sem interferências. O desejo de K. para falar com Klamm hoje é bastante verossímil, mostra a impossibilidade da comunicação entre o poder e uma sociedade.

Como Olga lhe disse, ainda hoje perdura: lá no Castelo sempre se é observado, ao menos está é a crença que se tem.

Sunday, August 05, 2007

Uma nota sobre um quadro de Klee.

Trata-se de Paul Klee. Morte e fogo, de 1939/40. Onde uma caveira brutal, em fundo de fogo, para baixo inclinada, como que tombando, figura e grafo do literalmente iminente. É a queda para o abismo. A última réstia, por isso de cor e de força. No entanto, concede o elevar-se. Como a figura superior esquerda, ao sem nome sem peso nem imagem possível. O espaço da proveniência de nenhum lugar. Sentimento do limiar que se ouve enquanto eco, a angústia de quem já sabe e se deixa arrebatar pelo terror da presença sem figura. A desesperação humana, diante da existência real do absurdo e da falta de perspectiva futura, perde-se também no esquecimento e na perda da experiência. A impossibilidade da redenção do passado e da promissão do futuro desemboca num presente perpétuo: apenas a morte resta. Único pórtico que ainda produz estremecimento.