Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Friday, December 07, 2007

O que fazer com Nietzsche?

Senhores, atentai para Zaratustra:

“Deus está morto”

Morreu quando a cruz do calvário

Foi transformada em suástica

E as palavras ditas na montanha

Enterradas com as cinzas de Giordano Bruno

(Mário Jorge)

Mário Jorge, poeta sergipano (e muito mais do que esse título pode significar), nesta poesia intitulada “deus está morto”, mexe com Nietzsche. Em que sentido? Autorizo-me a arriscar. Primeiro, vamos dar nomes aos bois.

É Zaratustra quem anuncia a morte de Deus. Anuncia e não mata. Deus já está morto, Zaratustra apenas anuncia sua morte. Repito para não dar margem àquela velha piada de que em certo muro em algum lugar teriam escrito “Deus está morto. Assinado Nietzsche”, e depois: “Nietzsche está morto. Assinado Deus”. O que Nietzsche quis com essa frase não foi decretar a morte de Deus, mas apenas colocar que a filosofia já andava sem Ele. Mário Jorge entendeu isso. Tanto que o problema deixou de ser se realmente Deus existe ou não (que nunca foi um problema nietzschiano) e passou a ser “quando Deus morreu”? Ou mesmo, de que forma? Quem matou Deus? E de que Deus Mário Jorge está falando?

Mário Jorge resguarda o sentido nietzschiano, mas apenas provisoriamente, para logo depois irromper com sua ironia. Para Nietzsche, o evangelho morreu na cruz. Mais ainda, ele acha um responsável: São Paulo. Em Aurora, afirma que se não fosse Paulo “mal saberíamos de uma pequena seita judia cujo mestre morreu na Cruz” (Aurora, p. 53, aforismo 68, Cia das Letras, 2004). Por que Nietzsche diz isso? Porque Paulo interpreta a morte de Cristo e lhe dá um significado. Algo como que Cristo morreu pelo pecado de todos nós. Deus crucificou seu filho por amor, então nós temos que responder a este amor na medida em que nos sintamos culpados, culpados por esta morte, e a reparemos acusando-nos, pagando os juros com divida. A crítica nietzschiana é a de que sob o amor de Deus, sob o sacrifício de seu filho, toda a vida se torna reativa.

Acontece que MJ em vez de falar evangelho, fala em suástica. Como assim? Há oposição entre Zaratustra e Cristo, mas há também um paralelismo: ambos anunciam um novo homem. Um que salva a vida através do ressentimento, outro que transvalora a vida. Um que afirma o diferente, outro que nega a vida em prol de valores alicerçados na má-consciência (grosso modo, “é por minha culpa”), no niilismo (grosso modo, a negação da vida tornando-a irreal, como valor de nada) e no ressentimento (grosso modo, é por tua culpa). Se o homem que Cristo anunciava morreu na Cruz por Paulo, quem teria matado com a suástica? Aliás, o que Zaratustra anunciava era o além-do-homem. Arrisco a dizer que a ironia de MJ residia aqui: assim como Paulo em sua interpretação da morte de Cristo fez nascer o cristianismo, a suástica (o nazismo) matou o advento do super-homem nietzschiano.

É esse o motivo desta escrita. O nazismo matou o super-homem nietzschiano. Primeiro porque as interpretações fascistas se apropriaram de Nietzsche e fizeram dele o filósofo da superioridade ariana; segundo porque o marxismo também fez de Nietzsche um protofascista. Essas duas leituras acabaram com Nietzsche. Como sair dessa encruzilhada? Abandonando de vez Nietzsche? O que será que se pode fazer com Nietzsche ainda hoje?

Até mesmo aqueles que nunca abriram uma página de um livro de Nietzsche, mas já tenham ouvido falar dele em alguma ocasião, conheçam a sua fama de “fascista” ou de “proto-fascista”, isto é, alguém forneceu as bases ideológicas para o fascismo. Por outro lado, podem também existir aqueles para os quais o nome de Nietzsche não evoque nada sólido, apenas um vão, uma lacuna. O certo é que seu nome não suscita nenhum tipo de postura doutrinária ou mesmo de uma escola de pensamento fixa. Por isso Nietzsche permanece intempestivo.

Escrever sobre Nietzsche é sempre desafiante, pois se está sempre falando de um sujeito polêmico, pouco entendido e pouco discuto; mas muito, muito mesmo, execrado e odiado. Mas, por que falar de Nietzsche? Ou, melhor, por que ler Nietzsche hoje? Ainda mais: o que fazer com Nietzsche?

Divido este pequeno texto em três capítulos: Nietzsche fascista: a leitura de George Lukács; Nietzsche e o valor dos valores: a leitura de Deleuze; Afinal: que fazer com Nietzsche?. Há diversos objetivos nesta escrita. O primeiro de tentar clarificar de onde vem exatamente a idéia de um fascismo propriamente nietzschiano. O segundo de intencionar uma outra possível leitura de Nietzsche. O terceiro de apontar para uma postura diante de determinados autores não-dogmática, ou seja, não preconceituosa, fechada ante a este ou aquele filósofo, escritor, artista etc.

NIETZCHE FASCISTA: A LEITURA DE GEORGE LUKÁCS E DO MARXISMO.

Falar em marxismo, no singular, é por demais comprometedor devido às variadas leituras que são realizadas no interior do marxismo. Entretanto, parece ser unificador entre os marxistas a crítica de que Nietzsche é fascista, ou que não é um sujeito cuja atenção deve ser voltada durante muito tempo. Com este título, quero elucidar onde isso começou, quais são as bases argumentativas e conclusões chegadas. Para tanto, utilizo o livro Existencialismo ou Marxismo? (Tradução de José Carlos Bruni, Livraria Editora Ciências Humanas Ltda., São Paulo, 1979) do marxista húngaro George Lukács. Todas as citações realizadas neste título, portanto, guardam as aspas e o número da página nas notas de rodapé, para não quebrar o texto.

Para Lukács, há uma “crise da filosofia burguesa”[1]. Essa crise indica que a filosofia “perdeu seu caminho”[2]. A pergunta de Lukács é quando e onde se perdeu a filosofia? “Até onde é necessário retroceder para reencontrar bom caminho?”[3]. Partindo da reflexão leninista do imperialismo como estágio superior do capitalismo, Lukács propõe que há uma relação entre pensamento fetichizado e realidade posta nos filósofos inseridos nesta crise da filosofia. Em seu conjunto, a filosofia seria o reflexo no plano do pensamento das contradições do imperialismo. Entretanto, o problema que Lukács quer não é aquele entre a realidade social do imperialismo e o pensamento burguês, mas a “evolução efetiva e a superfície dessa realidade social”[4]. Isso faz, segundo o autor, com que filósofos, apesar da boa fé, dêem uma representação completamente falseada da realidade social, limitando-se ao exame da superfície.

“Na sociedade capitalista, o fetichismo é inerente a todas as manifestações ideológicas”[5]. Isso quer dizer que as relações humanas aparecem como aspectos de coisas. Há uma personificação das coisas e uma coisificação das pessoas. Isso acontece, por exemplo, no mascaramento entre produto do trabalho, valor do trabalho e trabalho humano. Não se enxerga que o valor de alguma mercadoria tem um fundamento, não paira no ar, não vale aquilo por nada. Desta forma, o valor aparece como qualidade objetiva que não é questionada. E o trabalhador submete-se ao valor inquestionavelmente.

A primeira crítica que respinga em Nietzsche é a de que a filosofia da crise tem uma tendência que diz que não podemos nada saber da essência verdadeira do mundo e da realidade e que este conhecimento não teria nenhuma utilidade. Respinga porque para Nietzsche não há fatos, apenas interpretações. É a vontade de verdade que cria a ciência, de que nada é mais necessário que o verdadeiro. Nietzsche se pergunta: por que a verdade é tida como necessária? O que quer quem procura a verdade? Lukács, entretanto, parece não prestar atenção nisso. Pelo contrário, diz que “esta filosofia repudia por princípio todas as pesquisas que tendem a elaborar uma concepção coerente de mundo, pois uma visão de conjunto definiria os limites traçados pela ciência, que considera como autoridade suprema”[6]. Não era intenção de Lukács criticar Nietzsche neste trecho. Apesar de em minha opinião ser um ponto cujo Nietzsche tem uma força crítica sem igual.

Em outro trecho Lukács critica diretamente: “Nietzsche critica severamente os sintomas culturais da divisão capitalista do trabalho, sem considerar a menor transformação da organização social”[7]. Em outro: “É necessário dizer que não se fala nunca das contradições da cultura capitalista, mas das da cultura em geral, da cultura simplesmente?”[8] O que Lukács cobra é o comprometimento filosófico com a revolução. Comprometimento que se dá a partir da exploração histórica do pensamento. Não se pode falar do homem em geral, mas do homem capitalista, do proletário como força motor do capitalismo. Não há motivo para se falar da cultura em geral, mas da cultura propriamente capitalista a ser superada.

Lukács critica ferrenhamente o conceito de amor fati de Nietzshe, a fórmula da grandeza do homem: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo mas amá-lo. O que Lukács enxerga aí é que não só Nietzsche como Schopenhauer, Heidegger e Kierkegaard, “preconizam uma existência voltada sobre si mesma, isolada de toda a vida pública cujo equilíbrio repousa precisamente num pessimismo total a respeito do mundo exterior”[9]. Destarte, a crítica se volta para o dado de que esta filosofia defende que a realidade superior é irracional e supra-racional. É a transformação mistificadora da condição do homem do capitalismo imperialista em condição humana geral e universal que corrobora para a apropriação fascista de Nietzsche, por exemplo.

Se há uma crise da filosofia burguesa, é o fascismo que a representa, segundo Lukács. Para ele “só o materialismo dialético desenvolveu uma resistência ativa contra o fascismo”[10]. No fim, conclui: “Salvar Nietzsche ou Schopenhauer, tornando-os pensadores humanistas, era uma operação destinada ao fracasso frente ao fascismo, que tinha a vantagem, a despeito de toda a sua vulgaridade, de ser seu verdadeiro continuador espiritual”.

Há um problema nesta conclusão lukacsiana. Ora, assim como está fadado ao fracasso humanizar Nietzsche, também o é excluí-lo, tirar sua força crítica e entregá-la ao fascismo, determinando toda a sua produção como proto-fascista. Há algo a mais a fazer com Nietzsche do que o humanizar. A força do marxismo está naquilo onde ele permanece: como uma teoria crítica do capitalismo. Criticando filosofias pela sua falta de compromisso com relação à transformação social, abre horizonte para uma nova leitura da cultura. Porém há outra forma de lidar com Nietzsche. Não é negando os argumentos de Lukács, que me parecem bastante concisos e coerentes. O que se pode dizer lendo Lukács é que Nietzsche pode ser apropriado pelo fascismo. Mas fica uma outra questão: há como se apropriar de Nietzsche sem fascismo? Não se trata portanto de humanizar Nietzsche, mas de lhe dar uma significação no interior de sua própria obra. Liberando desta forma uma potência até então negada.

NIETZSCHE E O VALOR DOS VALORES: A LEITURA DE DELEUZE

Quando citei Mário Jorge no início do texto, usei sua suposta ironia em dizer que o Zaratustra morreu na suástica. A partir daí, disse que esse trecho quer dizer duas coisas: que o super-homem nietzschiano morreu na interpretação fascista e na acusação marxista. De duas formas: na primeira porque se leu Nietzsche pelos óculos autoritários e na segunda porque se leu Nietzsche a partir do esquema marxista, o que levou a execrá-lo, tachá-lo de proto-fascista e não reconhecer ou mesmo fazer uso de nenhuma de sua força crítica. Ora, mas que força?

Há um livro essencial numa reviravolta na leitura nietzschiana: Nietzsche e a filosofia, de Gilles Deleuze. Porque este livro aponta para uma leitura de Nietzsche inovadora porque toma o vocabulário utilizado por Nietzsche pela sua lógica interna.

O projeto de Nietzsche é o de introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor. Portanto, entende-se Nietzsche a partir daqui. Elevado e o baixo, o nobre o vil, o senhor e o escravo não são valores, representam antes o elemento diferencial de onde deriva o próprio valor dos valores. Por isso que Nietzsche realiza uma genealogia, um estudo sobre o valor de origem e origem dos valores. Mas, o que é um valor?

Antes, diga-se o que é uma força. Para Nietzsche, o conceito de força é o de uma força que se relaciona com outra força, a isso se chama vontade. Essa vontade (vontade de poder) é o elemento diferencial da força. Resulta daí uma divergência para Schopenhauer, para o qual a vontade era uma força unificada que adormecia no coração de cada homem, uma força que escapava ao conhecimento do intelecto. O problema de Nietzsche não está nessa força unificada que reside em cada sujeito, mas na relação de uma vontade que ordena e uma vontade que obedece. A relação entre as forças não é dialética, não há uma relação essencial que tem por elemento o negativo. Uma força afirma sua própria diferença.

Se o conceito de força é o de uma força que se relaciona com outra, ativo e reativo são qualidades originais que exprimem essa relação. Ativas são aquelas forças que dominam, exercem sua força, afirmam sua diferença indo até onde podem; reativas são as forças que são dominadas, asseguram mecanismos e finalidades, separam-se daquilo que podem. Ativo é tender para o poder. Nietzsche critica Darwin justamente por este ter tomado a luta pela existência como uma seletividade do mesmo, encarado este mesmo como superior. Para Nietzsche, foi Lamarck que melhor compreendeu a luta: não como a vitória dos mais fortes, mas como poder de transformação, como força de metamorfose. O que se chama de ativo e reativo é uma qualidade original da força mas que só pode ser interpretada enquanto tal em relação ao ativo, a partir do ativo. Neste exemplo, tomada isoladamente a seleção das espécies poderia ter um sentido ativo, de dominação sobre as demais. Porém não é isso que está em jogo para Nietzsche. Ele não se interessa por quem domina quem, mas por quais forças são dominantes no jogo da vontade de poder.

Quando Nietzsche pergunta quem domina, ele quer perguntar: são as forças ativas ou reativas? A vontade de poder é o elemento de onde emana a diferença de qualidade das forças postas em relação. Neste sentido, é a vontade de poder quem quer. No sentido de que nela predomina o ativo ou reativo. A vontade de poder é o elemento genealógico da força, diferencial e genético. Se ativo e reativo designam qualidades originais da força, afirmativo e negativo designam as qualidades da vontade de poder. Neste sentido, afirmação não é ação, mas o poder de se tornar ativo, devir ativo, onde predominam as forças ativas; negação também não é reação, mas um devir reativo, onde predominam forças reativas. A vontade de poder como elemento genealógico é aquilo de que derivam a significação do sentido e o valor dos valores. Ora, há construções humanas cuja predominância é reativa. Como exemplo, o cristianismo, alvo de crítica de Nietzsche. Deixemos essa discussão ainda para depois...

Novamente, o que Nietzsche chama de senhor e escravo são qualidades da força no jogo da vontade de potência. Nobre é ativo, quer a vontade afirmativa; escravo é reativo, que a força reativa, a vontade negativa. Falar de nobreza em geral, significar esses termos a partir de uma defesa nietzchiana dos valores aristocráticos é fazer questão de desconhecer a maior força crítica de Nietzsche: a transvaloração de todos os valores. Por isso é tão complicado ler Nietzsche. Há de se o ler de forma singular. Por exemplo: vontade de poder não é vontade que quer o poder. Como se utilizássemos uma representação daquilo que é o poder, concluindo que a vontade de poder é um mecanismo de dominação de outrem, porque busca o poder para submeter outro. Não é essa a questão nietzschiana. A vontade de poder designa qual poder que quer na vontade: ativo ou reativo? Ou, ainda, o poder é aquilo que quer na vontade. Abre-se o horizonte: as forças reativas, tanto quanto as ativas, podem triunfar. Mas, como?

Embora as forças reativas triunfem, não compõem uma força maior do que a ativa. Porque procedem de uma forma diferente: decompõem, separam a força ativa daquilo que ela pode, subtraem da força ativa uma parte ou quase todo o seu poder e por isso não se tornam ativa, mas pelo contrário fazem com que a força ativa se reúna a elas, tornando-se ela própria reativa. Uma força ativa pode se tornar reativa quando forças reativas a separam daquilo que ela pode. Nietzsche emprega as palavras “vil”, “ignóbil” e “escravo” para designar estados de forças reativas que assumem o comando, que empurram a força ativa para uma armadilha, substituindo os senhores pelos escravos que não deixam de ser escravos. Portanto, o que Nietzsche chama de fraco ou escravo não é o menos forte, mas aquele que qualquer que seja a sua força está separado daquilo que pode. O menos forte é tão forte quanto o forte se for até o limite do que pode. A questão não está no resultado da luta ou do sucesso que se obtém: é a própria essência. Nietzsche propõe um método: julgar as forças levando em consideração em primeiro lugar sua qualidade, ativa ou reativa; a afinidade desta qualidade com o pólo correspondente da vontade de poder, afirmativo ou negativo; a diferença da qualidade que a força representa em tal ou tal momento do desenvolvimento em relação com a sua afinidade: a força reativa como força de adaptação e de limitação parcial ou força que separa a força ativa daquilo que está pode, negando-a; força ativa como força plástica dominante e subjugante, força que vai até o limite do que pode, força que afirma a sua diferença, faz da sua diferença um objeto de afirmação. O que uma vontade quer não é um objeto (o poder) nem um objetivo (submeter outro através deste poder); mas afirmar a sua diferença ou negar aquilo que difere.

A vontade de potência dá a Nietzsche a força crítica necessária para ele martelar todo o edifício da filosofia. Para citar um objeto de crítica: a morte de Deus. Para Nietzsche, isso não é especulação, mas um anúncio. Que tem como pergunta quem é que mata Deus? A resposta que considero mais essencial é a de que a morte de Deus acarretou a substituição pelo Homem. Deus morreu e o homem lhe ocupou o lugar. Nietzsche desconfia da morte de Deus. Utiliza-se a vontade de poder: quem quer a morte de Deus? Nietzsche responde: o homem reativo, as forças reativas, o devir reativo. Porque o Homem mata Deus para lhe roubar a poltrona ainda quente de sua presença e sentar-se então como Senhor de si mesmo, como um conjunto de forças reativas que subjugam o próprio homem. A questão não está pois não existência ou não de Deus, mas o que se faz com a sua morte, como se lida com isso. Essa morte de Deus passou a ser anunciada antes do Zaratustra, no positivismo, na substituição da razão teológica pela razão científica.

Há tantos outros objetos de crítica de Nietzsche. Mas o que vale ressaltar neste pequeno texto é que há em Nietzsche algo que fica relegado ao ostracismo por Lukács e o marxismo. Ele acerta quando fala de uma pretensão transhistórica de Nietzsche. Mas dá para retirar algo de crítico. Deleuze coloca que o homem do ressentimento é passivo, reativo. O homem do ressentimento não sabe e não quer amar, mas quer ser amado. O que ele quer é ser alimentado, paparicado, instalado. O homem do ressentimento é o homem do benefício e do lucro. O ressentimento só se impôs num mundo fazendo triunfar o benefício, fazendo do lucro não só um desejo e um pensamento, mas também um sistema social, teológico, um sistema completo, um divino mecanismo. É um crime contra o espírito não reconhecer o lucro. Neste sentido, há uma moral do escravo, a utilidade. Não é preciso dizer: Lukács passa longe disso.

AFINAL: O QUE FAZER COM NIETZSCHE?

A revolução não é só política, abrange para ser autêntica todos os setores da realidade humana. É preciso transformar com o gesto e explodir com o grito. Isso quer dizer que não se deve somente execrar defensores do status quo. Freud e a psicanálise, por exemplo, são claros defensores do iluminismo. Walter Benjamin dizia que só em nomes dos desesperançados é que há esperança. Essa é uma chave interessante de reflexão: é justamente em nome daqueles que criticam radicalmente que se pode retirar ainda mais força crítica.

Ainda não interpretei os dois últimos versos que tratam da montanha e de Giordano Bruno. Zaratustra também desceu a montanha para anunciar o novo homem. Parece-me claro a analogia deste anúncio com Giordano Bruno. Este foi morto pela Inquisição, acusado de heresia. Em minha interpretação, o marxismo faz isso com Nietzsche. Considera-o um herege porque não fala de História, de proletário, de revolução. É necessário portanto o excluir da estante de qualquer marxista que se preze. Se possível, assassiná-lo em nome da conivência com o fascismo.

Não se deve deixar cair no sono dogmático das ortodoxias. Ler Nietzsche com óculos marxistas o transforma em proto-fascista. Limpando-se aquilo que se deve, Nietzsche pode surgir como uma potência subversiva. O além-do-homem nietzschiano define-se por uma nova maneira de sentir (um outro sujeito que não o homem), de pensar (outros predicados que não o divino, porque o divino constitui ainda uma maneira de conservar o homem, de conservar o essencial de Deus como atributo) e de avaliar (não uma mudança dos valores, uma permutação abstrata ou de valores apenas, mas uma mudança e inversão no elemento do qual derivam o valor dos valores).

A questão não é saber até que ponto Nietzsche pode ser apropriado pelo marxismo ou vice-versa. A tarefa é a de se debater com um escritor, filósofo ou artista dentro daquilo que ele se predispõe, da tarefa que ele se propõe a realizar. De Lukács permanece a crítica dialética de contextualizar historicamente, mas se joga fora seu descarte total de Nietzsche. Essa postura de abertura (e não de fechamento dogmático com relação a determinados nomes) a meu ver é o que pode suscitar, ao menos neste particular, novas formas de práxis, de lutas que não desemboquem em totalitarismos.



[1] P. 26

[2] P. 27

[3] P. 27

[4] P 28

[5] P. 28

[6] P. 34

[7] P. 39

[8] P. 42

[9] P. 44

[10] P. 62

Saturday, August 11, 2007

Diomedes: o entrelaçamento entre poesia e prática.


Em Mário Jorge [MJ] podemos indubitavelmente falar em um tipo de experiência estética, numa dinâmica da criação poética e numa ligação particular com o real. Resguarda-se a autonomia relativa entre a construção poética e a atividade real. A poesia mesmo sem se submeter a nenhuma tarefa explícita continua sendo autêntica, ato político. A arte como a liberdade, como explosão, como um murro no tempo, eis Mário Jorge. No entanto, há também o fator militante em sua poesia e é justamente aqui que ele se toca com Diomedes Santos Silva (1955-1993): o poeta militante.

Mário Jorge viveu o horror da pressão ditatorial. Sua estética por vezes esbarra na situação objetiva. Em alguns momentos chegou a abandonar completamente a estética, afirmando que é da fome e da dor que nasce a revolta. Ou seja, não se nasce luta das frases, dos poemas, nem do que ele chamou de choramingos aristotélicos lineares da adolescência mental sergipana. Politicamente a poesia de Mário Jorge é um brado silenciado pelo aparato coercitivo físico e psíquico da ditadura. Por exemplo:

Que tortura maior pode existir

Do que não se pode falar?

De ver tantos homens a dormir,

E não poder a eles acordar?


Que o choro das crianças famintas.

Que os gritos de dor do homem agonizante

Que as chagas purulentas dos meninos doentes,

Que o desespero da mãe de um filho morto,

Morto de fome, de sede e de frio.

Acorde os que dormem

O sono inocente e casto da ignorância,

O sono terrível da alienação

E que mate os que sabem e vêem

Porém nada fazem...

Este é o começo e o fim de Brados. Uma de várias poesias completamente voltadas para o compromisso da revolução radical de MJ. Diomedes é contemporâneo de Mário Jorge (1946-1973), contudo viveu a derrocada do socialismo real e da ditadura militar brasileira. Tais eventos históricos aparecem em sua anti-estética. Deixemos momentaneamente MJ com Diomedes num verso:

Todos estão adormecidos

Ou se fazem de desavisados

E deixam meu grito se perder!

Eu grito, eu chamo, eu aviso!

Acordem!

Que ainda é tempo de lutar

E a verdade não mente

Como as estatísticas!

Se a tarefa de MJ era transformar com o gesto e explodir com o grito, a de Diomedes era a de englobar em um só golpe o machado e a pena. Já não há diferença, é hora de centrar forças no único objetivo da revolução. Diomedes não cansa de despojar toda a sua esperança no funcionar a máquina/produzir a máquina/o mais importante elemento/econômico do processo, ou seja, o proletariado. Para Diomedes, a historiografia tradicional esqueceu que a História não é ditada em gabinetes, ela é fato, é ato de cada dia. É preciso quebrar essa linha dura: a alienação capitalista que chegou a um momento de solidez forte. É uma anti-estética porque não há mais estética, não há mais um e outro. Entre o tudo/e o nada/existe uma razão. Essa razão é a ruptura abrupta real. Já não se procura mais a saída na reflexão. Diomedes se aproxima do Marxismo da Ideologia Alemã, para o qual a oposição de fraseologias não combate de forma alguma o mundo real existente e das Teses Sobre Feuerbach, para a qual não se pode mais interpretar o mundo, mas sim transformá-lo.

Impelido pela práxis marxista, ali onde o homem deve mostrar a verdade e a força de seu pensamento, Diomedes leva a poesia ao seu extremo. Sua poesia não é um murro no tempo, é um salto para fora de si mesma. A arma desse salto, sua mola propulsora, é a esperança do fundo do poço/forçando portas, paredes e caminhos/invadindo homens, barricadas e o tempo/mesmo com toda a opressão/a libertação fecunda/DERRUBEMOS O REI!. A situação de uma periferia capitalista, cuja dinâmica é girar em falso ou de ter as idéias fora do lugar, experimentando a possibilidade de um horizonte melhor com a dissolução da ditadura militar contrastava com a posição mundial de derrocada do socialismo realmente existente. Diomedes experimentou, com o PT em ascensão, a possibilidade de transformação. Seu fio condutor, em sua construção anti-estética, é justamente a certeza da vitória. Na periferia periférica capitalista, Diomedes bradou, gritou e acreditou que outros fariam o mesmo que ele.

Os métodos de Mário Jorge e Diomedes não são fracassados, embora não tenham dado certo. Ainda que possamos perceber ainda hoje os frutos de um e de outro, sobretudo na formação de uma categoria combatente na conjuntura sergipana, há uma lacuna de lá para cá. Este espaço vazio de militância foi provocado pelo avanço do componente integral e fundamental do capitalismo: o fetichismo da mercadoria. O capital domesticou a própria relação que existia entre homem e arte, ao passo que domesticava a relação homem x homem e homem x trabalho. Os métodos dos dois poetas sergipanos, acima de tudo militantes engajados na possibilidade de uma nova sociedade, não são fracassados porque plantaram a semente de uma revolução: a idéia de que se devem arrebentar as amarras. É essa força que poderá tornar capaz algum tipo de fissura profunda no capitalismo. É como se Mário Jorge e Diomedes quisessem dizer que há um ponto em que, quando se chega, já não se pode mais voltar; é neste ponto que a atividade revolucionária deve almejar conquistar.

Thursday, August 09, 2007

O Vôomito: excurso sobre Mário Jorge.

Correndo risco de ser autoritário, tomo por tal figura a essência da experiência da poesia de Mário Jorge Vieira (1946-1973). Nela estão contidos seus principais elementos: a ação do marginauta e a subida sem vacilo no desconhecido mundo da imaginação. Esse tipo de dinâmica cujo elemento central é a possibilidade de silêncios que dormem em palavras sedentas de ouvidos é própria ao universo poético de Mário Jorge onde a possibilidade da impossibilidade é pensada não por um fechar de olhos que engendra um mundo metafísico e desligado do real, mas um mundo de extrilhaços; ou seja, de um mundo despedaçado pela tecnologia onde é esta própria técnica que estilhaça o mundo que lhe mostra possibilidade de entrar nos trilhos ou de procurar trilhos para rumar para um novo horizonte. Mais, ainda, esse desenho traz também a experimentação da revolição.

Com este termo, revolição, Mário Jorge parecia pensar diversas coisas. Por exemplo, uma experiência estética própria que consistia, a saber, num ato inicial de toda manifestação voluntária. Algo como um auto-mergulho no ser e no mundo. Trata-se da ação de imergir no fundo do homem e das coisas: é a arte-vida, arte-vômito: deglutir o real como totalidade. Revolição passa a ser um movimento próprio reflexivo da construção literária e poética. É um ir e voltar. Por isso um vôo, porque se situa sempre entre. A poesia de Mário Jorge era o engolir e vomitar o real. Porém não apenas isso. Há um meio-termo aí: é a degustação ou a digestão própria ao interior de cada organismo. Engolir e vomitar não é reprodução do mesmo, mas do diferente, do particular. A poesia de Mário Jorge é uma desdobração. Não é desdobramento porque não é só a ação de revirar o mundo de uma outra forma. É desdobração porque é a ação de desdobrar, de redobrar, de retorcer, de chacoalhar, de quebrar e de destruir; todos estes elementos no liquidificador da criação. Essa desdobração não é frente a um mundo dobrado, cuja ação de desdobrar trouxesse sua lógica. É a entorse distorce do mundo.

Há um trecho de Mário Jorge que também sintetiza, a meu ver, boa parte de sua intenção:

O marginauta imagina-se

Em remotas plagas onde o vento

Não habita seu ninho de nuvens


O marginauta fez-se só

E a solidão ácida dos dedos

Cruzando-se em mãos alheias

Ao chiqueiro do corpo


O marginauta maluco margina

Andante duro de mágicas

Cansado de sons trágicos

Toma a nave e decola

Há três momentos essenciais presentes aqui que são igualmente importantes para Mário Jorge. Primeiro a ação primeira do poeta: o vôo para remotas regiões. É essa ação de liquidação do estoque das palavras e o jogar-se sem medo no barco da imaginação que constitui o ato do marginauta. O segundo momento é o fazer-se só em escrita, em arte. Já é aí a concreção artística possível de ser transmitida. No entanto, MJ esbarra-se na sua situação objetiva, ou mais precisamente no ambiente de Aracaju e Sergipe. O que ele chamou de angústia congênita do artista nordestino: a saber, a inexistência de leitores para seus escritos em concomitância à existência da realidade desumana e cruel da exploração do homem no nordeste. MJ pensava numa arte que pudesse disputar com os meios de comunicação de massa, a Indústria Cultural, a primazia no cotidiano do homem. Ele mesmo confessou ser um sacrifício imenso para sua mão obedecer a sua cuca a escrever coisas desta espécie. O terceiro momento é o da arte confrontada com o constante avanço tecnológico. A problemática da necessidade da contemporanização da arte defronte ao silêncio das palavras que não se fazem ouvir ainda que sejam ditas. Num mundo onde as sirenes policiais cantavam terrível sinfonia que mais pareciam o prelúdio de um presente perpétuo sempre futuro. Como se a constante mudança a tudo mudasse menos a si mesma. Perecia também a arte que poderia apodrecer isolada da explosão que estava ocorrendo no mundo. Era preciso também que a arte acompanhasse essa mudança de um modo a se fazer ouvir autonomamente. O constante avanço das forças produtivas acabou por alienar quase que absolutamente o homem, fê-lo impotente face à dinâmica veloz que o esmaga, dilacera e desafia. É necessário, portanto, que a arte resguarde o momento de protesto, para tanto, que se nade contra a corrente e que se coma as ondas. Tomar a nave e decolar fecha o ciclo interminável do vôomito.

A obra de Mário Jorge, a meu ver, é a travessia do vôomito. Começa com um vôo para este mundo visto por uma outra perspectiva, continua com uma tentativa de materializar tal visão e termina com uma ação mais forte do que começou: criar incessantemente. MJ apostava todas as fichas na certeza de que a poesia não perderia para Indústria Cultural. Justamente porque em sua opinião ela trazia algo impossível a mass-media: o germe do novo sempre diferente. A arte não pode aliar-se a nada, deve permanecer autêntica em si, só assim poderá ser política, revolucionária. É uma atividade puramente livre, desprendida de qualquer grilhão. Mas nem por isso descompromissada com o real, pois sua tarefa é transformá-lo.

Mário Jorge se faz ouvir no silêncio, sobretudo na mudez dos jovens de Aracaju. Onde ali existe silêncio, conformismo, padrão e indiferença, podemos ter a certeza de que ali não existe Mário Jorge. Sua obra luta em duas frentes: transforma com o gesto e explode com o grito. Isto significa afirmar que é a ação revolucionária unida com um novo tipo de vínculo estético que pode criar um mundo distinto. Como ele mesmo dizia: não mais a conversa fiada. A palavra afiada.

Monday, August 06, 2007

Joseph K.

Há quem coloque lado a lado K. e Joseph K. De certo modo, há uma relação de continuidade. Ou melhor, uma relação de semelhança. Joseph K. também sobrevive num mundo desesperado, dado por entrega ao absurdo, à injustiça despótica e à falsidade. Em uma palavra: um mundo sem liberdade. A crítica da reificação burocrática e da organização hierarquizada que controla tudo e a todos se fazem sentir tanto em um quanto em outro.

Em certa manhã Joseph K. acorda detido. Para dificultar sua compreensão da situação em que se encontra, o fato de ele está detido não o impede de que ele cumpra suas obrigações. Este estado permanente de vigília não é só próprio à literatura de Kafka, mas também ao próprio mundo tal qual se conhece atualmente. Há infinitas possíveis interpretações de ambos os anti-heróis. No entanto, por mais variadas que sejam, terão de se fundar por aquilo que de fato acomete o sujeito kafkiano: a constante presença de um representante de uma ordem do mundo fundada sobre a mentira. Lugar em que a mentira não é suprimida nem pelo seu contrário, toda tentativa isolada de opor a verdade à mentira está condenada ao fracasso. A única saída, se há saída, é a abolição deste mundo por um diferente. Trata-se de um certo tipo de redenção peculiar submergida no universo sufocante do arbítrio burocrático.

Aquele que Joseph K. olha atentamente enquanto seu coração era atravessado por uma faca não era um amigo, nem uma criatura bondosa, como conjeturou Joseph. Aquele, cuja inércia provocou a última dúvida de Joseph K., era o homem incapaz de levantar-se contra uma injustiça em sua frente, um homem incapaz de reconhecer-se no outro, a quem já não é possibilitado a possibilidade da transformação. Se há esperança, não era para Joseph K.

A respeito de K.


Afinal de contas, quem é K.? Difícil responder tal pergunta. K., para não ser ninguém, é preciso que seja todos. A situação de K. é daquele sujeito que já se perdeu, que se encontra fora de si e fora do mundo. É possível encontrar em K. a experiência do sujeito moderno, alienado de si mesmo, no entanto, tal alienação em K. tem caráter de uma realidade própria de sua não-vida. K. experiencia o Fora. Não no sentido de vivenciar um mundo além do nosso, mas vive precisamente neste, mas desdobrado em uma outra versão.

K. é o protótipo de uma época histórica onde a os homens se debatem com um poder anônimo e que desfila em qualquer lugar. Penetra nas inter-relações humanas – na figura de Frieda e Amália, ambas com decisões distintas todavia provocadas e influenciadas diretamente pelo poder d’O Castelo. No íntimo de K. – em seus ciúmes doentios e sua frustração por essas duas figuras. Adentra ferozmente equânime na impossibilidade de se compreender as autoridades, não porque não há o que compreender; mas porque não há como compreender a ofensiva ininterrupta e inexorável do poder nas pessoas.

K. mostra o abuso de poder na existência própria do poder. Não como algo que lhe é estranho, mas constituinte, fundamento. K. ainda se faz ouvir porque a espera ainda existe. A K. não foi só impossibilitado uma permanência tranqüila na aldeia, mas também a formação de uma família, a manutenção de si num lugar fixo sem interferências. O desejo de K. para falar com Klamm hoje é bastante verossímil, mostra a impossibilidade da comunicação entre o poder e uma sociedade.

Como Olga lhe disse, ainda hoje perdura: lá no Castelo sempre se é observado, ao menos está é a crença que se tem.

Sunday, August 05, 2007

Uma nota sobre um quadro de Klee.

Trata-se de Paul Klee. Morte e fogo, de 1939/40. Onde uma caveira brutal, em fundo de fogo, para baixo inclinada, como que tombando, figura e grafo do literalmente iminente. É a queda para o abismo. A última réstia, por isso de cor e de força. No entanto, concede o elevar-se. Como a figura superior esquerda, ao sem nome sem peso nem imagem possível. O espaço da proveniência de nenhum lugar. Sentimento do limiar que se ouve enquanto eco, a angústia de quem já sabe e se deixa arrebatar pelo terror da presença sem figura. A desesperação humana, diante da existência real do absurdo e da falta de perspectiva futura, perde-se também no esquecimento e na perda da experiência. A impossibilidade da redenção do passado e da promissão do futuro desemboca num presente perpétuo: apenas a morte resta. Único pórtico que ainda produz estremecimento.