Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Thursday, August 09, 2007

O Vôomito: excurso sobre Mário Jorge.

Correndo risco de ser autoritário, tomo por tal figura a essência da experiência da poesia de Mário Jorge Vieira (1946-1973). Nela estão contidos seus principais elementos: a ação do marginauta e a subida sem vacilo no desconhecido mundo da imaginação. Esse tipo de dinâmica cujo elemento central é a possibilidade de silêncios que dormem em palavras sedentas de ouvidos é própria ao universo poético de Mário Jorge onde a possibilidade da impossibilidade é pensada não por um fechar de olhos que engendra um mundo metafísico e desligado do real, mas um mundo de extrilhaços; ou seja, de um mundo despedaçado pela tecnologia onde é esta própria técnica que estilhaça o mundo que lhe mostra possibilidade de entrar nos trilhos ou de procurar trilhos para rumar para um novo horizonte. Mais, ainda, esse desenho traz também a experimentação da revolição.

Com este termo, revolição, Mário Jorge parecia pensar diversas coisas. Por exemplo, uma experiência estética própria que consistia, a saber, num ato inicial de toda manifestação voluntária. Algo como um auto-mergulho no ser e no mundo. Trata-se da ação de imergir no fundo do homem e das coisas: é a arte-vida, arte-vômito: deglutir o real como totalidade. Revolição passa a ser um movimento próprio reflexivo da construção literária e poética. É um ir e voltar. Por isso um vôo, porque se situa sempre entre. A poesia de Mário Jorge era o engolir e vomitar o real. Porém não apenas isso. Há um meio-termo aí: é a degustação ou a digestão própria ao interior de cada organismo. Engolir e vomitar não é reprodução do mesmo, mas do diferente, do particular. A poesia de Mário Jorge é uma desdobração. Não é desdobramento porque não é só a ação de revirar o mundo de uma outra forma. É desdobração porque é a ação de desdobrar, de redobrar, de retorcer, de chacoalhar, de quebrar e de destruir; todos estes elementos no liquidificador da criação. Essa desdobração não é frente a um mundo dobrado, cuja ação de desdobrar trouxesse sua lógica. É a entorse distorce do mundo.

Há um trecho de Mário Jorge que também sintetiza, a meu ver, boa parte de sua intenção:

O marginauta imagina-se

Em remotas plagas onde o vento

Não habita seu ninho de nuvens


O marginauta fez-se só

E a solidão ácida dos dedos

Cruzando-se em mãos alheias

Ao chiqueiro do corpo


O marginauta maluco margina

Andante duro de mágicas

Cansado de sons trágicos

Toma a nave e decola

Há três momentos essenciais presentes aqui que são igualmente importantes para Mário Jorge. Primeiro a ação primeira do poeta: o vôo para remotas regiões. É essa ação de liquidação do estoque das palavras e o jogar-se sem medo no barco da imaginação que constitui o ato do marginauta. O segundo momento é o fazer-se só em escrita, em arte. Já é aí a concreção artística possível de ser transmitida. No entanto, MJ esbarra-se na sua situação objetiva, ou mais precisamente no ambiente de Aracaju e Sergipe. O que ele chamou de angústia congênita do artista nordestino: a saber, a inexistência de leitores para seus escritos em concomitância à existência da realidade desumana e cruel da exploração do homem no nordeste. MJ pensava numa arte que pudesse disputar com os meios de comunicação de massa, a Indústria Cultural, a primazia no cotidiano do homem. Ele mesmo confessou ser um sacrifício imenso para sua mão obedecer a sua cuca a escrever coisas desta espécie. O terceiro momento é o da arte confrontada com o constante avanço tecnológico. A problemática da necessidade da contemporanização da arte defronte ao silêncio das palavras que não se fazem ouvir ainda que sejam ditas. Num mundo onde as sirenes policiais cantavam terrível sinfonia que mais pareciam o prelúdio de um presente perpétuo sempre futuro. Como se a constante mudança a tudo mudasse menos a si mesma. Perecia também a arte que poderia apodrecer isolada da explosão que estava ocorrendo no mundo. Era preciso também que a arte acompanhasse essa mudança de um modo a se fazer ouvir autonomamente. O constante avanço das forças produtivas acabou por alienar quase que absolutamente o homem, fê-lo impotente face à dinâmica veloz que o esmaga, dilacera e desafia. É necessário, portanto, que a arte resguarde o momento de protesto, para tanto, que se nade contra a corrente e que se coma as ondas. Tomar a nave e decolar fecha o ciclo interminável do vôomito.

A obra de Mário Jorge, a meu ver, é a travessia do vôomito. Começa com um vôo para este mundo visto por uma outra perspectiva, continua com uma tentativa de materializar tal visão e termina com uma ação mais forte do que começou: criar incessantemente. MJ apostava todas as fichas na certeza de que a poesia não perderia para Indústria Cultural. Justamente porque em sua opinião ela trazia algo impossível a mass-media: o germe do novo sempre diferente. A arte não pode aliar-se a nada, deve permanecer autêntica em si, só assim poderá ser política, revolucionária. É uma atividade puramente livre, desprendida de qualquer grilhão. Mas nem por isso descompromissada com o real, pois sua tarefa é transformá-lo.

Mário Jorge se faz ouvir no silêncio, sobretudo na mudez dos jovens de Aracaju. Onde ali existe silêncio, conformismo, padrão e indiferença, podemos ter a certeza de que ali não existe Mário Jorge. Sua obra luta em duas frentes: transforma com o gesto e explode com o grito. Isto significa afirmar que é a ação revolucionária unida com um novo tipo de vínculo estético que pode criar um mundo distinto. Como ele mesmo dizia: não mais a conversa fiada. A palavra afiada.

1 comment:

Poeta impar said...

"Casa"


juntando tudo.
esta voltando pra casa;
voltando pra terra do poeta...
voltando pra Marte!
onde não se precisa de par:
pois todos são ímpar.


j.Fábio 27/05/2007