Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Tuesday, March 31, 2009

Elogio à Chinesa, de Godard.





Em 1967, alguns meses antes de um mês que marcaria profundamente o ideário comunista mundial portanto, Godard finaliza o seu “A Chinesa”. Num primeiro momento, os corpos acostumados com o cinema atual podem imaginar que o filme seja sobre uma chinesa em terras francesas numa época pré-revolta classista. Não estariam errados. Apenas equivocados por um deslocamento simples: a chinesa, aqui, não é uma pessoa, mas um devir. A Revolução Cultural Chinesa é um devir que atravessa a França em 1967. Dentre outros devires, como o cubano sob a figura de Che Guevara, o brasileiro sob o nome de Marighela, o soviético nas teses de Lênin etc. O cinema atual liquidou o devir, transformando-o a surpresa num esperado, algo como um pouco da crítica que Adorno faz das improvisações do Jazz, as quais já são mecanicamente prontas e aplicadas à uma melodia em específica.

Esse deslocamento foi o grande troféu herdado pelo declínio do sistema socialista real. Muito além de uma experiência socialista, o que indubitavelmente o não era mais depois de 1924, a União Soviética, junto com outras revoluções posteriores, simbolizavam muito mais que a revolução era possível, ou seja, que a vida poderia ser regida de acordo com a possibilidade de uma transformação radical da sociedade. Esse horizonte que tinha como norte visível a revolução é o que caracteriza toda a época moderna. O que estava em questão era sempre o devir, nunca as pessoas; sempre os acontecimentos, nunca os obstáculos. No entanto, a revolução em alguns casos não aconteceu e, em outros, fracassou. Ela não é mais um horizonte.

Quem mais ganhou com tal fracasso revolucionário foram as teorias psicológicas (humanismo existencialista), metapsicológicas (psicanálise) e comportamentais (behaviorismo e cognitiva). Essa mudança explica porque uma “filosofia sem rigor” e uma “medicina sem controle” (Canguilhem) cresceu tanto na segunda metade do século XX. No momento em que a revolução passa de uma realidade virtual para um devaneio individual, uma fuga interna como um mecanismo de defesa para fugir de si próprio e das obrigações com sua própria vida, os modos de subjetivação mudam radicalmente no seio da sociedade. Transformam-se, portanto, em máquinas de captura da subjetividade. A psicologia dobra a subjetividade sobre si própria, desloca o devir para a pessoa. Os fantasmas, sempre coletivos e sociais, passam a ser individuais e fantásticos[1].

A Chinesa, desta sorte, situa-se num espaço bastante singular. Um grupo enfurnado num apartamento em Paris durante as férias que planeja modificar a sociedade a partir da teoria marxista-leninista, mas que, ao fim e ao cabo, volta normalmente às aulas, expulsa um de seus membros e tem o outro suicidado em desespero, pode ser altamente criticado e, o que é pior, enclausurado na máquina psiquiátrica sob o nome de diversas patologias. Ao mesmo tempo, no entanto, o grupo consegue realizar uma crítica de Foucault, colocando-o no bojo do estruturalismo que era, por sua vez, o reflexo da decadência da inteligência francesa revolucionária. Dentro do apartamento com algumas pessoas, é incômodo que não existam problemas pessoais, a não ser quando servem a outros interesses. Atualmente, é impossível que os problemas pessoais não existam em qualquer lugar, sobretudo nas movimentações sociais. Esse é o saldo de nosso período dito pós-moderno: os atuais modos de subjetivação transformaram o indivíduo e seus sofrimentos numa materialidade indestrutível, obstaculizando de vez qualquer possibilidade emancipatória.

O grande mérito da Chinesa é fazer o telespectador participar desse devir-revolucionário.

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[1] Em Anti-Édipo, Deleuze e Guattari criticam a máquina de captura lacaniana em 1960 e 70. Robert Castel, em O Psicanalismo, estende a crítica ao aparelho psicanalítico e à clínica. São dois livros que, para além de uma crítica centrada somente na psicanálise, colocam profundamente em questão o espaço psicoterápico (clínico). Denunciam, portanto, que o espaço esquadrinhado da clínica psicoterápica não é neutro, nem pode ser politicamente suspenso no ar. O espaço clínico é, asism, atravessado de fio a pavio pelos fluxos sociais.

Sunday, March 22, 2009

Rumo a uma Greve Geral ?

O título pode parecer descabido a qualquer morador aracajuano, acostumado com a passividade reinante de nossa cidade. Para outros, pode parecer pura bravata. Nem um nem outro. Por partes, portanto.

Bombeiros[1]. Professores[2]. Médicos[3]. Rodoviários[4]. Categorias em greve, diria um discurso eufemista. Sejamos claros: uma parte significativa da classe operária decretou, ao mesmo tempo, estado de greve. São setores que preenchem, cada um a seu modo, preocupações centrais do Estado: transporte, educação, saúde e segurança. Mas, o que isso significa? Que estamos num processo de revolução? Que se aproxima de nós um período inédito? Não é para tanto. Não obstante, é inegável que há algo acontecendo.

A crise, a qual tentei analisar objetivamente há alguns meses atrás neste blog, saiu do plano abstrato e onipresente, também ilógico, para entrar nas práticas reais e cotidianas. Estabelece-se uma crise quando não há o que fazer: trabalhadores lutam por melhorias de condições de vida, através de aumento no salário, empresários não cedem a tais demandas e o Estado, por sua vez, faz vistas grossas.

Felizmente ou infelizmente, não há nenhuma vanguarda desse movimento. Nenhum partido conseguiu, até então, hegemonizar essas lutas, fazê-las entrar no escopo do que seriam lutas emancipatórias do sistema capitalistas, uma vez que são demandas sem as quais não há esse sistema societário baseado no capital. Ora, é possível hoje realizar tal tarefa vanguardista?

A situação é inovadora. Inquietante. Faz pensar. E o que é mais valioso: faz agir. O que podemos esperar dos próximos dias? Mais trabalhadores aderirão à greve? A luta de classes mais viva do que nunca: será que o professor colocará falta no aluno ou que não poderá ir à aula no dia que não tiver transporte ou dará o conteúdo normalmente para os que lá estiverem? Essas lutas atravessam as instituições cruelmente. Não há como escapar. Em breve, quem sabe, atravessará a vida e se transfomará em biopolítica. Aguardemos. Somar-se-á, já as reivindicações citadas, o racionamento da água.

Temporariamente sem água, transporte, educação e uma parte da segurança. O que restará ainda àqueles que pensam em ir às ruas?

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[1] http://absmse.blogspot.com/2009/03/negociacao-entre-pm-e-ssp-continua.htmlhttp://www.pm.se.gov.br/pm.php?var=1233781540http://www.assomise.com.br/modules/news/article.php?storyid=9http://www.correiodesergipe.com/lernoticia.php?noticia=31517
[2] http://www.infonet.com.br/educacao/ler.asp?id=83255&titulo=educacao
http://www.infonet.com.br/educacao/ler.asp?id=83384&titulo=educacao
[3] http://www.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=27013&hoje=2009-02-26%2010:53:05
http://www.infonet.com.br/noticias/ler.asp?id=70494&titulo=saude
[4] http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=83727&titulo=cidade