Arte-vida, arte-vômito: deglutição do real como totalidade. (Mário Jorge)

Friday, January 09, 2009

Mantega e a chave para compreensão da crise econômica.



O atual Ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega, acabou de fazer um pronunciado que nos revela claramente uma chave para compreender a atual crise econômica mundial. A crítica marxista geralmente subestima o adversário e escorrega fazendo análises simplistas e muitas vezes óbvias demais. Entender, em primeiro lugar, que o adversário, ou os donos do poder, como se dizia na ditadura militar, entende mais sobre a conjuntura econômica do que os subordinados é uma boa iniciativa metodológica para não cair em ingenuísmos superficiais.

Numa negociação entre Banco do Brasil e o Banco Votorantim, Mantega afirmou categoricamente que não se trata de uma nacionalização, mas de uma parceria onde ambos os lado saem ganhando, embora ele, em seu discurso objetivo e prático, tenha apenas elencados pontos positivos para o banco privado. Ora, Mantega não está errado. A nova crise mundial não resultou numa nacionalização dos bancos. Os óculos marxistas estão turvos, precisam ser ajustados. Essa crise está longe de ser o começo do fim do capitalismo ou uma retroação histórica, um retrocesso da história econômica do capital. Ela é, sim, a abertura de uma nova realidade, a consolidação da ordem neoliberal e o primeiro passo fundamental para a entrada no Império.

Separarei o texto em três pontos para elucidar o que quero dizer. O primeiro ponto será uma distinção entre liberalismo e neoliberalismo, que tem como objetivo desmistificar a idéia de que o neoliberalismo é uma releitura simplória com modificações pontuais do liberalismo. O segundo ponto é mostrar como a intervenção keynesiana segue uma direção diametralmente oposta a intervenção neoliberal. O terceiro é mostrar como essa crise econômica tem na verdade seu maior fruto na imobilização política mundial. O quarto é uma conclusão mínima.

Primeiro ponto, ou a distinção entre liberalismo e neoliberalismo.

Grosso modo, o liberalismo deve ser entendido com a defesa de um espaço social não controlado pelo Estado. Ou seja, o liberalismo é a defesa de que existe um espaço no interior da sociedade que não sofre ação interventiva estatal. Esse espaço, não por acaso, economicamente se chama mercado; filosoficamente se chama indivíduo; ideologicamente se chama liberdade. Portanto, a tríade mercado-indivíduo-liberdade são os pilares fundamentais do liberalismo. Para qualquer liberal, é preciso deixar o mercado se autofuncionar, autogerar, autocriar. O liberalismo defende uma autogênese do mercado. Daí porque a não-intervenção estatal constitui, para o liberalismo, uma necessidade metodológica prático-econômica. O mercado só pode funcionar quando nada o atrapalha, quando ele é deixado à própria sorte. Existem mecanismos mercantis que só funcionam por si próprios, sem intermediários. O liberalismo diz: não mexer no mercado é a melhor forma de garantir uma sociedade capitalista onde a concorrência se transforma na materialização da liberdade humana. Isso é liberalismo.

Por sua vez, o neoliberalismo, grosso modo, advoga uma outra coisa: é preciso saber mexer no mercado para garantir que este funcione da melhor forma possível. Ora, há uma mudança substancial aqui. O Estado passa de um monstro opressor para um mal necessário à ordem do mercado. No neoliberalismo, o que há é a proposta de usar o próprio Estado como financiador e facilitador da ordem capitalista. Evidentemente que há uma fobia estatal tanto no liberalismo quanto no neoliberalismo. Mas enquanto o primeiro temia o Estado e lutava para expulsá-lo do campo mercardológico, o segundo tem uma fobia de outra ordem: ele quer se apossar do Estado, controlá-lo e fazê-lo servir a seus próprios fins. Temos o seguinte esquema explicativo de distinção:






O liberalismo constitui-se, portanto, como uma liberalização d’um espaço vazio destinado à prática mercadológica cuja dinâmica imanente é a de uma dispersão absurda/caótica que paradoxalmente desemboca numa harmonia socialmente útil. O símbolo disso é a “mão invisível” de Adam Smith, aquela que força o produtor de mercadorias de uma forma obscura e quase mística. Já o neoliberalismo não é uma simples renovação do liberalismo. Não é somente isso. O neoliberalismo marca uma transição fundamental e uma diferença clara com relação ao liberalismo. Essa transição se refere, dentre outros fatores, à relação com o Estado: ele sai de um aparato a ser excluído para um aparato a ser incluído de forma determinada e controlada.

Segundo ponto, ou Keynes versus Friedman. Ou como Mantega dá as chaves para a compreensão da crise.

John Maynard Keynes é um dos grandes responsáveis pela política do Estado de Bem-Estar Social. Dispenso aqui maiores explicações para não correr o risco de sair do escopo proposto. Ou seja, não vou me aprofundar no que representou esse Estado mas sim no que ele trouxe de inovação e a partir daí mostrar que ele é extremamente diferente do Estado proposto pelo neoliberalismo. Contudo, dá para dizer o que é fundamental: O Estado benfeitor foi a solução encontrada pelos Estados Unidos para a Grande Depressão de 1929.

Keynes argumentava que o Estado deve intervir na economia de mercado com o fim de diminuir o emprego involuntário e aumentar a produção. Assim sendo, o objetivo da intervenção estatal é regularizar o ciclo econômico e evitar assim flutuações dramáticas no processo de acumulação do capital. Portanto, Keynes dá uma volta de parafuso: o que é incontrolável no mercado se transforma em canalizável para o Estado. Dito de outra forma, o Estado é um aparelho que tomará partido no jogo de mercado mas o fará para seu próprio benefício através de regulamentações. O que Keynes provoca é uma outra formação possível do liberalismo: o mercado deve permanecer intocável sempre, menos quando ele começa a prejudicar a formação social. Neste momento, logo, o Estado deve tomar partido da sociedade e, ao mesmo tempo, dar espaço para o mercado funcionar da melhor forma possível. Quando o Estado keynesiano toma partido numa grande empresa multinacional ele o faz garantindo que os ganhos dessa empresa voltarão para a própria sociedade, essa é a volta no parafuso de Keynes.

Para Milton Friedman, o guru dos neoliberais, o Cristo deles, a relação é bem outra. O mercado é um elemento discricionário de sucesso. A questão não é a legitimidade do mercado, mas o sucesso das trocas monetárias. Para Friedman o Estado deve garantir o funcionamento ideal do mercado, deve possibilitar que o mercado funcione em todos os lugares, em todas as esferas. Daí as desregulamentações dos direitos dos trabalhadores. A idéia de que a saúde e educação devem ser abertas para a iniciativa privada. O Estado é idolatrado pelos neoliberais como mecanismo garantidor do avanço do mercado em todas as esferas da sociedade. O mercado não é mais aquilo que funciona num espaço determinado. Ele é um elemento de verdade no jogo de sucesso e algo que deve controlar toda a sociedade. Exemplo: a queda de Allende, em 11 de Setembro de 1973, foi motivada pelo suposto não-sucesso da economia socialista: falta de alimentos básicos, transporte falho etc. Decerto foram boicotes organizados, no entanto, para além desse fato inconteste, o que aparece é o funcionamento desses elementos como a forma de deixar claro que o sucesso de um País depende exclusivamente de seu sucesso econômico. Assim sendo, a intervenção neoliberal abre espaço para o mercado, enquanto a intervenção keynesiana fecha o espaço de mercado, fá-lo voltar, dobrar-se sobre si mesmo para fora, isto é, para a sociedade. Em Keynes há um retorno social. Em Friedman há novos anéis soltos para a expansão cada vez mais ilimitada do mercado.

Quando Mantega diz que é leviano afirmar que as ações dessa crise são estatizações/nacionalizações dos Bancos ele está mais do que certo. Se fossem nacionalizações teríamos ganhos retornados à sociedade. Não quero negar que há ganhos, inibe-se demissões em massa, por exemplo. Mas somente algumas. Outras tantas ocorrem por aí. Quando o Banco Nacional Americano salvou alguns bancos, estes bancos foram escolhidos à dedo e foram feitos como forma de usar o Estado para liberar ainda mais o espaço de mercado. Ou seja, os montes de dinheiros não estavam guardados, eles foram subitamente criados não para fazer retornar de alguma forma para sociedade, mas para injetar novo ânimo e realidade à expansão especulativa do capital.

Terceiro ponto, ou a crise como corrupção de subjetividade.

Essa crise longe de fazer retornar a intervenção estatal keynesiana, inaugura um período histórico inédito na dominação capitalista. Assim como no Império Toni Negri e Michael Hardt colocam a criação da ONU e a expansão do New Deal como primeiros passos para a consolidação de uma ordem que passou para além do imperialismo, podemos entender a constituição dessa crise como um novo patamar da história capitalista. Uma vez que ela não significa um retrocesso, mas uma ação completamente nova. Não em sua forma, mas em sua atuação.

A história do neoliberalismo, da Escola de Chicago, não é uma história de tantas vitórias em seu território nem a nível mundial. Foi só bem tarde que o neoliberalismo retornou aos Estados Unidos. Embora tenha tido ganhos significativos, como no Chile de Pinochet. A nível mundial, o neoliberalismo nunca tinha vencido como agora. O que essa crise demonstrou é a completa inutilidade do Estado como representante de alguma coletividade. Essa crise demonstrou a soberania neoliberal. Ela mostrou que não há contraposição suficiente para barrar o processo que está em marcha, a saber, a subjugação da multidão de forma totalitária pelas transnacionais e pela ordem vigente.

A corrupção de subjetividade é a anulação da oposição. Essa crise demonstrou como o Estado e o poder biopolítico submete a vida ao mercado. Ele cria a partir do nada, imprime mais-dinheiro, como manutenção de uma ordem especulativa abstrata coercitiva. Submete as forças potencialmente ativas à nulidade imóbil. Corrompe as formas de subjetividade revolucionária. Faz com que a multidão se sinta impotente e desnecessária. Corrompe a subjetividade transformando criação em conformação parasita.

Quarto e último ponto, ou os desentendimentos da atualidade.

Essa última crise trás, portanto, novos elementos. Enumerando:

1) Sinaliza a vitória quase que triunfal do neoliberalismo, fazendo do Estado e do dinheiro modos de operação do mercado;


2) Corrompe a subjetividade revolucionária transformando as potências de emancipação em parasitas conformados com a ordem dominante;


3) Por meio de grandes mídias dissemina o medo e o pavor no mundo inibindo qualquer tentativa de demonstração;


4) Põe em xeque as leituras mais antigas do marxismo que consideram erroneamente que essa crise é um retorno às origens do Estado de Bem-Estar social e não a porta aberta para um novo período da dominação capitalista.

Dessa forma, é preciso olhar para os novos acontecimentos, como a Guerra de Gaza, como uma conseqüência política da crise econômica. Assim como os dinheiros foram impressos sem nenhuma justificativa plausível a não ser o fim em si mesmo na especulação financeira, as bombas de Israel em sua quantidade absurda e mortífera apenas mostram que a guerra também se transformou como justificativa justificada em si mesma. Novas modificações na ordem mundial ainda virão e em breve. Resta saber, contudo, o que se tem para contrapor. Porém isso não é algo que se sabe, é algo que se faz.

Saturday, January 03, 2009

O fatídico fim da ONU.










Marx certa vez disse, corrigindo um outro filósofo, que a história se repete, mas a primeira vez, sim, como tragédia, já a segunda, por sua vez, como farsa. Talvez não haja melhor ponto de vista introdutório para entender o que se passa no Oriente Médio e a ofensiva israelense. Uma vez que os judeus passaram de oprimidos por uma máquina de guerra estatal totalitária [nazismo] para opressores que usam uma máquina tecnológica total-democrática de uma forma bem parecida. Embora essa mudança seja mais uma farsa do que uma tragédia. Os motivos do nazismo eram trágicos: a produção e constituição de uma nação pura. As motivações de Israel são uma farsa: demonstração do poder bélico diante de uma resistência frágil e uma soberba totalitária com relação a qualquer justificação que não seja a própria guerra.

Filho legítimo da fundação da ONU, o Estado de Israel fecha um ciclo. Surgido como resposta ao suposto holocausto e como movimento sionista [estabelecimento de uma comunidade autônoma judaica], o Estado policial de Israel trata hoje de pôr um fim na ONU, cometendo um parricídio sem dó nem piedade. Abrindo uma página nebulosa e desconhecida da história. Não é à toa que tenha vindo logo após uma crise que nem os mais estudiosos marxistas ou economistas conseguiram ler, quando muito voltaram aos velhos óculos das décadas de 1920 e 30.

A ONU nasce como um poder transnacional/supranacional, acima das nações e além delas, com o objetivo de promover a paz perpétua mundial, antigo objetivo que fundou a Europa. Esse, ao menos, era o objetivo expresso. Por debaixo do pano, sempre houve sangue derramado. A ONU sempre esteve em situação de xeque e, como um jogador que já antevê sua derrota, escolheu perder peças com o único fim de adiar um acontecimento inevitável. A atual ofensiva de Israel, sem nenhum motivo subjacente sólido, tendo como objetivo instituições democráticas do Hamas, objetivando claramente uma dissolução material da democracia frágil daquela região, é o xeque-mate na ONU.

O que virá agora é uma grande incógnita. É uma pena que se tenha perdido qualquer espaço de conexão das transformações históricas, o devir dos acontecimentos, e as conversas, os debates.